Das castas entre os retornados

Nas Caldas da Rainha, em 1976, existia uma livraria, quase no final da Rua das Montras, percorrendo-a no sentido do mercado de frutas e legumes. A loja situava-se do lado esquerdo, e entre os livros expostos exibia um que me obrigava a parar, a contemplar a sua capa, a imaginar o seu conteúdo. Intitulava-se Moçambique, Terra Queimada, da autoria de Jorge Jardim. A edição que recordo apresentava na capa uma paisagem pintada a negro e laranja, devastada por um incêndio. Nunca comprei o livro, caríssimo para as minhas posses, e jamais o li.

Recordei o episódio recentemente, ao ler este texto de Rui Bebiano. A memória do livro, na montra das Caldas, leva-me a questionar o momento em que julgo ter tido a consciência de que traí o meu pai ideologicamente, avançando-o para altura menos tardia do que a registo no Caderno.

Por que parava eu na montra contemplando a capa do livro? Porque nele havia informação sobre a minha terra e aquilo em que ela se havia transformado. Porque a expressão “terra queimada” havia sido ouvida por mim muitas vezes antes de partir do Maputo - chegou a haver, entre colonos, a ação ou intenção nunca realizada de queimar a propriedade antes de partir. No dia da partida, destruía-se o que ficava, porque tinha perdido qualquer valor e não haveria de ficar para os negros dela se aproveitarem. Moçambique, terra queimada, tornava-se, assim, a perfeita metáfora, a mais expressiva, do que a minha terra se havia tornado. Terra queimada por eles para nós, queimada por nós para eles, e queimada porque eles, sem nós, porque não se ergueriam das cinzas durante anos seguidos de anos, como numa maldição bíblica. Da minha terra restava o carvão de um violento incêndio. Contemplava a capa com a dor e solidão dos exilados, dos que sabem ter perdido irremediavelmente as suas raízes.

Partia, então, lentamente, em direção à casa da minha avó paterna, onde haveria de jantar uma omoleta com salsa, entalada no pão, ou sopa de feijão com couves ou café de cafeteira com pão e manteiga, e estudar, e deitar-me a dormir numa cama com colchão de palha de milho, no barraco mais humilde de uma rua ao cais. E a minha avó diria, com orgulho, somos pobres, mas nunca aqui entrou uma gota de chuva.

Aos 13 anos eu tinha aprendido o valor da sobrevivência, portanto, para mim, estava tudo muito bem. A minha avó alimentava-me, proporcionava-me um abrigo, logo tinha mais sorte do que muitos. Ia todos os dias à escola e era a melhor da turma. Não tinha os meus pais nem o seu carinho e atenção, mas isso eram necessidades secundárias. Com o tempo retornariam e tudo voltaria à normalidade. Era preciso esperar, esperava-se.

Nas longas cartas que escrevia aos meus pais, uma ou duas vezes por semana, devo ter referido a existência de Moçambique, Terra Queimada, na Rua das Montras. Ponho as mãos no fogo em como o fiz. Se me recordo de ter escrito essas palavras? Não. Mas fi-lo, com toda a certeza. Fi-lo por ser ainda fiel ao meu pai e à sua mensagem. Conta a verdade, lá na Metrópole. Conta o que passamos por cá. A verdade era uma história muito longa, mas o que o meu pai pretendia que eu contasse, era o caos em que se transformara a descolonização, a vida ameaçada a cada segundo, o não saber se se chegaria a casa, quando se saía. Existia um risco real, constante, muito presente na minha memória.

Recordo o sábado em que não houve escola sabatina, porque o pastor Berg, bem como os restantes pastores brasileiros da igreja adventista, que frequentava com autorização dos meus pais, foram levados e presos, porque a religião era o ópio do povo. Se havia algo que contar como certo, nesses tempos, era o incerto. Havia uma estratégia a seguir: sobreviver o tempo suficiente para nos safarmos àquele inferno. Havia uma forma de sobreviver: procurar aliados contra o novo sistema ou subornar os subornáveis. Usámos todos os meios ao nosso alcance. O meu bilhete de avião para a metrópole foi adquirido por grande favor, através de alguém que conhecia alguém, e pago a bom preço.

Portanto, quando em 1976 parava na montra da livraria das Caldas, contemplando a capa de Moçambique, Terra Queimada, procurava um ícone perante o qual rezar, sem oração, o que havia perdido. Ao recordar este episódio fui levada a tomar consciência do facto de a minha memória ter trabalhado a ideia de traição ao meu pai. Percebi cedo que ele agia incorrectamente com os seus empregados, o que terá gerado em mim uma revolta não expressa, mas a consciência da traição terá de ser remetida para uma fase posterior, na qual começo a identificar-me ideologicamente com ideias políticas opostas àquelas com que havia contactado enquanto filha do colono. Portanto, a memória adapta-se, trabalha-se, reescreve-se.

Da mesma forma, acredito, hoje, que a personagm do meu pai surge demasiado romantizada no Caderno. Foi a memória que quis guardar dele, a que me interessou trabalhar literariamente. A ambivalência - porque posso compreendê-la e integrá-la na minha estrutura de referências teóricas e empíricas.

Recentemente, aconteceu a minha mãe revelar-me, em contexto inesperado, ações do meu pai que me chocaram profundamente, por colidirem com o discurso romântico que sobre ele criei. Aquilo saiu-lhe sem querer. Nunca lho tinha ouvido. Ela nunca o admitira. Mas a minha mãe é a mais fidedigna das fontes, pela sua contenção, discrição, por ter estado permanente do lado do meu pai, acalmando-o, embora, e por ser ela própria uma ex-colona munida do discurso aceitável sobre as colónias. Escutei-a tantas vezes, que posso desfiar, de cor, todas as expressões e frases com que descreve, perante visitas, a nossa vida em Lourenço Marques. Não é uma descrição, mas uma ladainha contendo o que aceita inserir no discurso aceitável.

Encaro hoje a memória como uma massa muscular que é possível trabalhar num sentido ou noutro. Que músculos do braço pretendemos desenvolver? E como? Existem uma série de diferentes exercícios que podem ser executados para valorizar este ou aquele. Agimos dessa forma com a memória, quase sempre inconscientemente, porque precisamos de nos adaptar aos discursos de época, para que nela possamos caber. Ninguém está disposto a correr o risco da marginalização, porque estamos ligados a outros por laços diversos: afetos, profissionais, etc.

Tal como os músculos, a memória pode igualmente atrofiar e perder capacidades, por falta de uso. Acredito que a maior parte das pessoas que fixa uma história pessoal inalterável, a qual repete ao longo dos anos com a mesmíssima semântica, acredita piamente no que relata. Mas todas as construções da memória são valiosas e merecem ser ouvidas. Não há uma memória melhor do que outra. Há é memórias que podem provar-se, e outras que não.

Entre os retornados, no que respeita à memória, há de tudo. Há os que possuem um discurso privado e outro público, e acabaram por se tornar grandes produtores de nacionalistas exacerbados; os que recordam, mas não contam, porque mexer no passado é abrir feridas, e não convém, e morrerão com elas cobertas por uma eterna crosta; e os que, como a minha mãe, foram criando a sua história pessoal, que defendem com unhas e dentes, porque delas depende a sua identidade, a sua forma de estar no mundo.

Há poucos retornados dispostos a enfrentar o touro, embora desde a publicação do Caderno tenha vindo a descobrir que são mais numerosos do que estimei.

Também não acredito em retornados bons e retornados maus. Há é melhores e piores portugueses, mais ou menos empenhados, mais ou menos generosos e acessíveis. Exatamente como os belgas, dinamarqueses e australianos. Alguns deles foram para África e voltaram. Onde encaixo eu o meu pai nesse contingente? No dos portugueses pobres que aprenderam a sobreviver à porrada, que a aprenderam como legítima, guardando, apesar de tudo, um santuário de valores católicos que nem sempre souberam converter em atos. Por outro lado, conheço retornados que em Moçambique eram vistos como demasiado permissivos com os negros, e que hoje não só se tornaram profundamente racistas, como o ensinaram aos filhos. Conheço retornados que viveram nas colónias sem nunca se terem apercebido das dimensões do colonialismo, ou que o aceitavam como a ordem natural das coisas; os ricos brancos e os pobres negros, sendo que os ricos fazem caridade e os pobres aceitam-na.

Hoje aconteceu receber um email de uma bloguista, alegando que o meu "juízo toldado" não me permite compreender certos factos sobre o colonialismo, e que mesmo em África houve quem lutasse contra o racismo. Não duvido. A mesma bloguista manifestou a intenção de me explicar, tentando remediar os meus preconceitos contra retornados, que é possível um branco ter filhos negros através da adoção ou de uma miscigenação que poderá ter existido no seu passado genético ou no da parceira. Respondi-lhe que não pensasse vir ensinar o padre nosso ao vigário. Desde 1963, já vou na minha terceira existência. Isto tem o seu lado cansativo, portanto concedam-me alguma latitude. Já vi e ouvi de tudo. Portugal é um bairro pequeno, mas em África tudo foi possível. Não atribuam tanta importância à minha memória. É apenas uma entre outras. Porém, não se lancem a tecer considerações sobre o meu "juízo toldado", porque só bebo ao sábado após o pôr-do-sol e se for noite de lua cheia.

Admito que subestimem a minha memória, que a questionem, que me questionem, mas não pensem em mim como um ser humano do sexo feminino, que escreve um blogue e publica uns textos. Sobretudo não pensem em mim como igual. Não há aqui igualdades para ninguém, sendo que pertenço a uma casta só minha. Vejam-me com um velho carro de combate feito de carne, bastante sarrafado, como um ciborgue que se autoregenera frente ao espelho. Vejam-me como qualquer coisa que enfia as mãos nas entranhas, raspa o tumor com a faca da cozinha, se cose a frio e continua caminho. E dobrem muito a espinha para a devida vénia, porque atrizes destas já não se usam. Não sei se me faço entender, mas o que interessa isso?!

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