A minha América I - Deus abencoe o mundo

Acordo às seis e trinta e dois, hora local, saída de um poço fundo, ainda tonta, totalmente desperta. Não me sinto recuperada, mas percebo ser impossível voltar a adormecer, porque acordei com uma frase. E sei.
Doem-me as órbitas dos olhos e todo o crânio sob a testa. Pressiono. Dói mais. Os olhos pesam-me e estou a ver pior.
Sento-me na cama e observo as pernas do meu corpo novo estendidas ao longo dos lençóis muito brancos. As unhas pintadas dos dedinhos dos pés. Que visão encantadora! Sorrio e digo-me, Isabela, a tua modéstia sempre correu as ruas da amargura!
E a voz do meu pai, tens pernas bonitas, rapariga. E agora eu, com dez anos, mirando-as, ensaiando com elas poses de pin up, fechada no quarto cor-de-rosa.
O chefe-eletricista, que não se vai embora, porque teima em assistir até ao fim a um espetáculo para o qual pagou bilhete inteiro, sorri. Sorri sempre, e de vez em quando atira uma gargalhada, pousando-me o braço sobre os ombros. Chego a assustar-me, olho para cima: é ele.
Ontem, veio comigo no avião, sentado entre mim e o senhor emigrante, explicando-me, estás a ver, rapariga, isto é como te dizia, é só quereres, desde que trabalhes. O trabalho não mata ninguém, pelo contrário. Olha que eu labutei a vida inteira, mas eu não pude, como tu. Eram outros tempos.
Comecei a fazer psicanálise porque o eletricista nunca se ia embora, e pensei, se calhar estou-me a passar. Não, é ele que não quer ir. Escutou tudo o que tinha a dizer-lhe e continua a rir-se, és fresca, saíste toda ao lençol de cima! E faz-me rir, também.
A minha mãe diz-me, ele não pode ir; o teu pai tem muitos pecados. Não quer, não pode, o que me interessa isso?! Queres andar por aqui, anda homem, goza o que ficou por gozar, diverte-te, diverte-me, defende-te, mas, por favor, pára de me escorraçar os namorados a pontapé. Tenho quase 50 anos. Chega. Isso chega, desculpa, get a life algures. Se te queres entreteter, aproveita e afasta-me os monos do caminho. Isso, agradeço, compungida.
Factos: o adaptador universal funciona e o computador recarrega a bateria enquanto manuscrevo.
Bolachas, uma banana, sumo, água. Tenho o necessário para sobreviver a um dia de jornada. Ao final do dia se verá.
Comprei um frasco de cola para fixar, no caderno de viagem, papelinhos bonitos. Na loja pedi cola para papel em tamanho pequeno. Passaram-me para a mão uma embalagem do tamanho de um frasco de shampô de 400 ml. Era a mais pequena. E lembrei as palavras do Sr. Simões no aeroporto, no último momento, a menina vai sentir, primeiro, que é tudo igual, mas em grande; segundo, que nasceu para ser americana; terceiro, que é exatamente como nos filmes.
O seu pragmatismo português excita a minha ternura. Não, não é só a percentagem que me cobra: o homem gosta de mim, o homem vê-me. Por outras palavras, aquilo é tudo à larga, Isabela, como a menina gosta, para sair de si em rajadas de luz incontida e branca; e aquilo é realidade e ficção indistinta, como aprecia, como nos filmes, a fantasia perfeita que a autoriza a viver mil vidas sem perder a que lhe foi oferecida. O Simões sabe-a.
Primeira imagem americana:a inscrição God bless America pintada a carateres gigantes e vermelhos no muro de um armazém de ferro-velho, à saída de Newark; um parque automóvel predominantemente japonês, elegante, prático, de altíssima qualidade. Zero carros de cidade. Pareceu-me ver gasolina a mais de 3 dólares. Terei visto bem?; a dimensão dos edifícios, não apenas em altura, mas em riqueza arquitetónica; a cor ferrugenta, ocre das fachadas com gente verdadeira a existir lá dentro. A vida leve e pujante das ruas, dos jardins, das esplanadas e esquinas, da fruta vendida pela rua.
Esquecer Paris. Nunca teremos Paris. Esquecer Londres. Isto é a cidade. Este é o novo mundo.
Não esquecer Lisboa, a vila triste e dorida, sempre envelhecida, mesmo vestida de novo, simbolizando a ideia de uma terra em potência, de seivas que não explodem, que não cumprem ao que vieram. Lisboa, a portuguesa, planando na essência adormecida, ignorando os dias, o sopro, o ânimo. Não a esquecer como não se esquece a mãe, Deus, a terra onde se nasceu e aquela onde nos parimos, sozinhos e com dor, qualquer coisa vinda de um lugar perdido.

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