O estômago cortado

Christina Onassis


O senhor Simões disse-me, pelo Skipe, a menina está cada vez mais parecida com a Natália Correia.
Acha?!, respondi, sorrindo com a cara toda.
Sim, a papada nota-se cada vez mais, e as bochechas começam a descair.
Fechei o sorriso, e despedi-me. No dia seguinte telefonei-lhe e informei-o que na quinta seguinte lhe agradecia que me acompanhasse ao médico. Que médico? Cirurugião. Para quê? Ele sabia. Ah, Isabela, isso era a sua salvação.
O cirurgião era um homem alto, bonito, sorridente, com os cabelos grisalhos. Primeiro mirou a proeminente barriga do senhor Simões, e perguntou-me, é a senhora ou o seu marido? Esclareci que o Simões encontrava-se ali na qualidade de amigo e acompanhante, pelo que o ignorou e concentrou-se em mim. Ora vamos lá.
Senhor doutor, eu própria faria o serviço ao espelho, tivesse as drogas e instrumentos necessários, mas não é o caso, sendo que algo pode correr mal, e eu quero viver. Isto que fique claro, eu quero viver, e por isso estou aqui.
Vamos encarar a realidade a frio: olhe para mim, doutor. Olhou em silêncio, sem resposta. Continuei. Mal me posso baixar para dar de comer ao cão, apanhar um clip, subir as escadas no serviço, correr cinco metros para apanhar o metro. Acha-me bonita, doutor? Pois eu, não. Vejo-me no espelho do elevador, o único que não posso evitar, e não me conheço. Aquela mulher inchada não sou eu. É uma criatura triste, sem pertença alguma. Apieda-se de si e odeia-se, sem conseguir libertar-se desse ciclo cinzento. Gostaria de lhe explicar que tenho os meus defeitos, mas sou jovial. Madura, mas ainda adolescente. Dentro da desconhecida cujo rosto vislumbro no espelho do elevador, e que o doutor tem agora à sua frente, dentro dessa massa quase impenetrável, estou eu. Ela tem de me parir, senhor doutor, e eu preciso da sua colaboração.
O senhor Simões acrescentou, precisamos muito, muito da sua ajuda, doutor.
Todos me mandam fechar a boca. “Quer emagrecer, é fácil, feche a boca.” Não consigo. Tenho uma enorme fome de pão. Preciso de encher o bandulho para sossegar, dormir, trabalhar. Imagine o doutor que tem de dormir, porque as suas consultas começam à nove, mas não consegue fazê-lo sem devorar dois ou três pãezinhos, sem os saborear, sentindo-os nas língua, no céu da boca. Precisa de os deglutir, sentindo-os atravessar a garganta e chegar ao estômago, pesando. Imagine a textura, o cheiro dos pãezinhos do dia, as partes mais moles, mais secas, a forma como o parte, e o ponto por onde abre. Um pão é alimento e arte. O pão sem nada dentro. Só aquilo, a farinha, o fermento, a água, o cozimento. Sem o pão o meu poço fica vazio, doutor, e isso dói-me, porque o ar frio enche o espaço vazio, gela-o. Como não consigo eliminar o pão, pensei que o doutor poderia ajudar-me a alterar o poço. Retiremo-lhes o fundo. Sem fundo, isto penso eu, não há peso, apenas processamento e transição. Não há que encher.
É que ela é escritora, doutor…, esclareceu o senhor Simões. O médico lançou-lhe um olhar de “nem que varresse a rua”.
Sabe quem vejo no espelho do elevador? Quem é essa triste mulher? Christina Onassis, nas suas fotos mais tristes. A mulher que desacreditou de tudo, que não conheceu o amor, tendo tudo. Lembra-se dela? Ele confirmou, sorrindo. Voltamos sempre às nossas referências. Em garota segui as desventuras de Christina Onassis, a herdeira mais infeliz do mundo. Tinha um ar de menina sorridente e uns olhos tristes, medrosos. De tudo o que recordo sobre Christina Onassis, retenho, sobretudo, um artigo numa revista da época, sobre uma técnica que usava para emagrecer: mandara prender as maxilas com ferros para não poder mastigar, e, finalmente, fechar a boca e emagrecer, como lhe diriam. Alimentava-se com uma palhinha entre os dentes. Nunca consegui esquecer isto. Na minha mente vejo-a com os ferros na boca, gemendo de carência. Os alertas do destino estariam já acionados?! Eu fui uma criança magricelas até aos oito ou nove. Por que haveria de ter guardado na memória os ferros na boca da Onassis e não a história dos seus múltiplos casamentos?! Bem, o sistema metálico, não sei se se recorda, não resultou. Tiraram-lhe o cinto de castidade alimentar e acabou por se matar, atirando-se de braços abertos em direção ao fundo do seu poço repleto de anfetaminas, álcool e barbitúricos. Mas eu não, doutor. Já me aguentei até aqui, atravessando as condições mais adversas, e há em mim um impulso de vida que transcende a própria vontade. Eu gostava de morrer já, se pudesse ser, mas o meu impulso de vida deseja-me velha. Gosto do mundo, dos aromas bravios da erva pisada…
O senhor Simões, voltando-se para mim, embora se dirigisse para o médico, interrompe: a menina devia falar abertamente ao senhor doutor dos comprimidos para dormir. Chega de mentiras. Diga a verdade. Quantos toma. Diga.
Ignorámo-lo. O que pretendo?! Tive esta ideia: o doutor cortava-me parte do estômago com os seus métodos, porque, já percebi, se não tiver estômago não posso comer pão, certo? Até trago um desenho. Não, não, vi na internet. Desculpe, não pretendo interferir, mas tenho pensado muito nisto, e pretendia apenas expor-lhe a minha ideia, mas tudo se inspira na investigação disponível on line… Certo, senhor doutor, mas deixe-me explicar, por favor… O senhor corta-me esta curva toda e transforma-me o estômago numa continuação do esófago. Pois, e cosia bem, isso é que lhe peço, uma boa cosedura, de maneira que não abra, não verta. É que assim abrevia-me o poço, doutor, o pãozinho sai-me do esófago, passa brevemente pelo estomâgo em tubo, entra no intestino, e adeus. Sem pão, poderei transformar-me em condor, e, num impulso, batendo as asas uma só vez, subir e, voar como qualquer outro pássaro. Peço desculpa por me ter alongado com a explicação. E a taxa de mortalidade deste tipo de cirurgia, doutor?
É que ela é escritora e não pode continuar assim, achou por bem rematar o senhor Simões.

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