Poderíamos viver sem os pobrezinhos?

Sou a favor dos pobres em qualquer sociedade. São sujinhos, falam mal e olham-nos com cara de carneiro mal morto, mas se não os tivéssemos o que faríamos aos restos, aos excedentes de consumo? É muito melhor entregar aos pobrezinhos os medicamentos quase fora de prazo do que incinerá-los. É melhor dar-lhes as sobras das cozinhas, que eles lá trazem os seus taparuerezinhos engordurados, nos sacos de plástico do Minipreço, e vão-se embora todos contentes. O mesmo com as roupinhas em bom estado que passaram de moda e nos enchem os armários, e até o lixo. Os pobres aproveitam qualquer coisa que se deite fora, e logo lhe arranjam utilidade. São capazes de pegar numa cadeira velha e restaurá-la. São desenrascados, cheios de ideias de reciclagem. Se tivessem emprego até podia ser que fizessem qualquer coisa. Se tivessem aprendido a falar, a escrever, a fazer contas poderiam ter alcançado outra vida, coitados. Mas não tiveram cabeça. Chego a pensar que o dinheiro gasto na produção e aquisição de desperdício poderia, talvez, formar estes indigentes para algum serviço, e dar-lhes dignidade, futuro. Nesse caso haveria menos desperdício e menos pobres, mas correríamos o perigo de se alterar a ordem social a um ponto em que as instituições de caridade seriam levadas à extinção ou a uma redução drástica, por falta de utilidade. Custa-me a conceber um mundo diferente, sem os pobrezinhos dos bairros sociais, e outros, que passam por nós, esguedelhados, pardos, dizendo "eu vejo ela quando vou buscar a sopa". Um mundo diferente, um novo mundo? Quem arriscaria mudar tanto? É mais seguro manter os pobres conformados. Que se lamentem, mas estão vivos e com as necessidades básicas asseguradas. Analgésicos a seis meses do prazo final de validade servem muito bem para lhes tirar as dores nos maxilares, enquanto os dentes não apodrecem e caem. Depois não nos venham é exigir dentaduras. A menos que alguma instituição de caridade as forneça com subsídios provenientes do consumo e do desperdício. Mas isso é função do voluntariado privado, da obra social da Igreja, não cabe ao Estado.

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