Venham ver o meu filho

A criança chorava no quarto ao lado.

Sentia-me presa, angustiada. Não conseguia levantar-me da cama, tomada pela doença de existir, contudo, era necessário acudir ao menino. Não dormia há dias, não tinha força nem vontade de viver, mas o bebé chorava. Levantei-me aos tropeções, dei-lhe colo, mama, biberão, desejando morrer, mas sabendo que me estava proibido desistir. Por ele estava presa à vida, e era a pior das prisões. Ele era a prisão. Não havia solução para este dilema. Tinha tido este filho, sozinha, e havia que cuidar dele, sozinha. Fora a minha escolha - a via mais difícil e consciente, embora não pudesse supor, mesmo aventando as piores dificuldades, uma angústia tão grande: uma vida dependendo totalmente da minha ação e abraço. Que sabia eu sobre a criança que chorava? Era meu filho, indiscutivelmente, tinha saído de dentro de mim, amara-o ainda na barriga, desejara-o, imaginara-o numa fase em que o incómodo máximo era uma contração hoje, outra amanhã, porém, agora não o conhecia, não o sentia totalmente meu. Era um outro ser. Um estranho que me gritava sem piedade. Tornara-me escrava dum pequeno bicho humano cheiínho de necessidades por satisfazer. Um empecilho que me atrapalhava a cura. A responsabilidade dilacerava-me. Depressão pós-parto?!, perguntava-me, tentando contemplar uma saída. Nesse caso a angústia teria um fim. Precisava de acreditar num futuro diferente: não sentiria então, nesse dia, as garras da angústia, rasgando-me como uma ave de rapina presa no interior do meu corpo, buscando ar e luz.
Talvez me habituasse a ele com o tempo. Talvez viesse a chorar menos, a criança. Talvez me deixasse dormir e curar as feridas do parto, da solidão, da teimosia em concebê-lo, para agora sofrer tanto. Talvez viesse mesmo a amá-lo. Quanto tempo estaria eu condenada ao castigo de ser mãe do bicho chorão, egoísta, que me matava? Quanto tempo até poder sentir-me livre de novo?

A angústia trepava, paralisando-me. Eu era a ferida sem chaga, a dor sem pancada, hematoma ou sangue vivo. E a angústia era nada haver para além. O fim.

Mas o orgulho, o poder da obrigação levantaram-me. Havia de me aguentar. Choraria, praguejaria, sentir-me-ia a mais miserável, mas erguer-me-ia do chão para satisfazer a criatura cor-de-rosa que era minha e ninguém me tirava. Era só minha, para a graça e a desgraça. E exibi-la-ia com os olhos enxutos, assim que fosse capaz, com o meu mais rasgado sorriso postiço. Vejam, venham todos, amigos, vizinhos, familiares, ex-amantes, vejam bem, o meu filho! O meu bem amado, tão perfeitinho. Sou normal, hein! E agora?! Não esperavam por esta, pois não?! Uma mulher como as outras. Gorda, mas emprenhável. Parideira com as tetas bem cheias de leite. Não, não custa nada a criar. Muito sossegadinho. Dorme as noites que é uma deleite. Um doce de bebé. Eis no berço, gritando, contorcendo-se, o bilhete para a minha legitimação. Tinha procriado e a minha existência justificara-se. Um bilhete caro, admito, porque a angústia é um ferro em brasa enterrado na carne - mas tudo tem o seu preço. O minúsculo ser humano continha o poder de me abrir finalmente as portas da normalização social, sexual, portanto valia um preço a pagar. Valeria, depois, se agora me aguentasse. Neste momento desejava apenas abrir os olhos, caminhar até ao quarto onde a criatura berrava, dar-lhe o leite, mudar-lhe a fralda e calá-la. Precisava de calmantes para aguentar a pressão, o nada. Drogas fortes para esquecer o inferno da maternidade. Mas que raio de ideia! Aguentar-me. Isso, aguentar-me. Interessava calar a criança enquanto a ave de rapina me rasgava os pulmões e eu não via luz nem futuro. Só dor, noites e dias de dor sucedendo-se sem esperança, enquanto a criança engordava à minha custa e me retribuía em mijo e merda. Levanta-te, vá. Caminha, morta. Querias, aqui o tens. Vai mostrá-lo ao teu querido. Vai dizer-lhe, mandaste-me ter filhos, marido, uma vida normal, olha, aqui tens, que lindo, não achas?! Tem o queixo semelhante ao da tua menina. Quase parece teu filho. Mas não é. Tive de foder com outro, aliás, fodi com muitos homens cujo nome nem sequer perguntei, porque o Destino escreveu que os meus filhos não te pertenceriam, nem eu a ti, nem tu a mim, mas seja como for, meu amor, já viste como sou normal e capaz?! Um filho é um milagre. Como te compreendo, agora! Prende-nos tanto! Dá tanto sentido a uma vida! Eu seria lá capaz de adormecer ou acordar sem o sentir primeiro nos meus braços. O que poderá haver de melhor do que existir em função deles e dos seus interesses?! Do amor, claro. Porque falamos de amor. Trabalhar dia após dia, suportando as humilhações, os transportes, porque sabemos que têm de comer, vestir-se, ir à escola, ao judo, ao piano. Viver à força, porque não temos outra saída, certo? Eles precisam de nós, e como somos gente com moral, boa educação, há que abdicar da vida para oferecer vida. Estranho paradoxo, contudo interessante, não te parece?
Acordei de súbito, apavorada. Tentava engravidar pela segunda vez. Eu e o Nunes encontrávamo-nos todos os meses durante os dias mais perigosos do período fértil. Não nos amávamos. Éramos amigos e tínhamos um acordo: seríamos pai e mãe do mesmo filho. Ele manteria distância, eu criaria a criança e não lhe negaria a paternidade. Era um acordo que contava cumprir. Admirava Nunes pela coragem em aceder ao meu pedido. Agradava-me que quisesse ter um filho comigo, que afirmasse tão honestamente que um filho meu seria a criança mais bonita do mundo, porque eu tinha bons genes. A sua generosidade e interesse contribuíam para a minha elevação. Afinal, não era assim tão má para consumo. Afinal, havia homens que imaginavam filhos comigo, e filhos lindos, louros, com os olhos clarinhos. E eu mantinha inúmeros restos de beleza, portanto o Meu Amor havia de levar com este filho bem nos cornos. Toma lá. Ei-lo. É verdade, meu amor eterno: fodi à grande e à francesa, e não foi contigo. E gostei - mentira, mas não interessava. E aqui tens, lindo, o produto da foda e sua prova, mas também da minha sensualidade, do meu interesse para os outros homens. Quando uns não querem, amor, estão outros morrendo.
Acordei de súbito, com os olhos muito abertos, respirando ofegante. Queria esquecer este pesadelo, mas não conseguia largá-lo. Seria uma mensagem? Quem ou o quê se daria ao trabalho de me enviar mensagens sobre as angústias da maternidade? E desta forma? Um pesadelo demasiado real, apesar de tudo. Tinha vivido a angústia. Sentia-a no peito, ainda. A ave de rapina tinha afundado as garras. Queria esquecer-me e lembrar. Ter um filho seria a decisão mais correta? Ter um filho porquê, para quê? Estaria ciente de que o pesadelo poderia tornar-se real? Suportaria tanta dor? Mas, meu Deus, não a suportavam as outras mulheres? Seria eu, porventura, diferente? Ocorreu-me que os sonhos não passavam de construções da mente baseadas nos pensamentos que ocupavam o nosso quotidiano. Significavam sempre o seu contrário. Bons auspícios, portanto. Melhor seria esquecê-lo e continuar em frente. Pensar para quê? Não havia nada em que pensar. Esta criança encontrava-se em andamento, demasiado planeada. Eu havia revolvido céu e terra para encontrar um pai ou um dador, tanto me fazia. O pai não tinha importância, mas o produto final. Pelo que o projeto seguiu o seu curso e à quarta tentativa engravidei do Nunes.
Comprei o teste de gravidez na farmácia, à primeira falta. Fi-lo na casa-de-banho, depois de regressar do trabalho, e sorri, sozinha. Sorri largamente, sempre sozinha, e guardei o segredo só para mim durante uns dias, cantando e rindo na minha mente, fantasiando o futuro, sozinha. O Meu Amor iria ao jardim com a sua linda menina. Marcaríamos encontro. Eu dir-lhe-ia, quero apresentar-te o meu filho. E levar-lhe-ia o meu troféu. E sorria, sozinha. Sorria.

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