Fica

Abrimos a porta de casa e dispersámo-nos farejando os teus lugares. Queríamos encontrar o cheiro da tua vida.

A Morena sentiu-o logo no tapete laranja da sala, e eu fui direta à tua cama do quarto, peguei nos teus lençóis e cheirei-os fundo. Ainda estás lá. O teu sangue, a tua carne fendida. Depois chorei longamente, rasgada, de joelhos, como as pessoas fazem quando são derrotadas, e não podem recuperar o que perderam.
No corredor percebemos o rasto do teu corpo arrastando-se em direção à varanda, devagarinho, e escutámos o teu latido baixo, vem dar-me uma ajudinha.
A tua taça de água, entre a casa de banho grande e o quarto, tinha uma capa de pó. Quebrei-a, e, por baixo, a água continha o sabor doce e morno do teu hálito, que a Morena bebeu.
Não devia ter lavado na véspera da partida o teu edredão do escritório, manchado de pus e sangue, porque agora poderíamos cheirá-lo e rebolar-nos sobre essa parte de ti ainda presente. Consola-me saber que temos o teu pêlo atrás das portas, e um pouco por toda a casa. Vamos recolhê-lo e guardá-lo, porque o pêlo nunca morre.
Na sala cheira a desinfetante, a pomada antibiótica e cicatrizante, e ficaram espalhadas compressas, ligaduras, adesivo, tesoura, e os medicamentos que tomavas a horas certas, para ficares boa.

Cheira-me também, não sei se é por saber agora demais, à morte que um corpo adia, não compreendemos porquê. Adia por acaso, não por amor, porque nesse caso tê-lo-ias antecipado, porque era a mim que me cabia tratar-te, aliviar-te, consolar-te, e, se nada pudesse alterar-se, cavar a tua cova com os meus braços, embrulhar-te numa mortalha, e enterrar-te, sentindo uma última vez o teu peso e cobrindo-te de terra. Isso era um assunto nosso e de mais ninguém, e tu sabe-lo muito bem. De mais ninguém. Era minha missão.
Já farejámos os teus lugares, já perguntei à Morena, sentes o vazio, sentes? E queríamos que ficasses, porque amanhã vai estar sol na varanda frente, logo de manhã, e tu adoras o sol da manhã. Por isso, fica connosco. Não lavo os teus cobertores. As tuas camas estão nos mesmos lugares e não sei se a Morena se atreverá, por ora, a ocupar o que sabe pertencer-te. Chama-me baixinho uma só vez, pela manhã; eu levanto-me, pego-te ao colo e levo-te para o sol.

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