Os do lado de lá

A propriedade servia de canal de entrada, no país onde eu vivia, a clandestinos, negros, provindos do regime autoritário cujo território se iniciava nas traseiras desse mesmo terreno. Saltavam a vedação e penetravam na propriedade, deslizando como cobras entre o capim alto.
Do lado de lá a vigilância era permanente, cerrada, mas os negros conseguiam, apesar de tudo, encontrar abertas, momentos de distração, golpes de sorte. Arriscavam. Todos os dias havia gente apanhada no salto e gente que saltava. Mulheres, crianças, homens, famílias inteiras.
A propriedade não me pertencia. A casa estava abandonada desde que os donos morreram. Frequentava-a para alimentar animais perdidos ou abandonados que aí se recolhiam. Cães e gatos. Havia lagartixas, osgas, insectos, ratos pela propriedade abandonada, para gáudio dos cães e gatos, mas que eu temia.
Via os clandestinos rastejarem, no escuro da noite, lentamente, pelo capim, escondendo-se nas árvores e arbustos, procurando que os seus movimentos não acordassem os sensores sonoros e luminosos que aí existiam, e lembrava-me desses animais asquerosos, embora pequenos, com os quais se cruzariam.
A minha passagem costumava despertar os sensores, e era desagradável, mas os guardas, sempre do lado de lá, com acesso ao lado de cá, confirmavam a minha presença pelas câmaras, conheciam-me, e comigo não havia problema. Eu era branca e pertencia ao lado de cá. Não queria saltar para o outro lado. Eu era a mulher dos animais, não representava qualquer perigo. Não interessava.
Os clandestinos sabiam da minha existência, conheciam as minhas horas, e esperavam que eu passasse, e os alarmes fossem acionados, para aproveitar o minuto seguinte de nova escuridão e restabelecimento da ordem e conseguirem sair. E eu, vendo na noite os seus vultos parciais, por vezes sentindo-os, apenas, um coração bater, uma respiração apressada, a erva roçada, fingia não os ver. Nunca trocámos uma palavra. Nunca contei a ninguém que os via todas a noites procurando salvar a vida. Era um segredo que ninguém revelava.

A sua coragem engrandecia-me, mas estava para além disso. Eu sabia o que era movermo-nos no silêncio e na escuridão em direção a uma luz futura. Sabia o que era arriscar tudo para salvar a vida.

Simulava trancar o portão, mas deixava-o aberto, apenas encostado, para que pudessem sair por ali sem saltar o muro. Era assim todas as noites.

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