O caril é para sempre


Tenho a ideia de que nada é tão semelhante ao amor como o caril.
Quando eu era pequena a minha mãe comprava-o, em sacos de papel, no bazar de Lourenço Marques, a um monhé com banca na zona dos monhés, uma área-souk, fresca, umbrosa, cheia de cores, odores e idiomas, coberta de lonas coando a luz fresca. O monhé compunha a banca com sacos de pano de cerca de cinco quilos, cada um contendo a sua qualidade de pó colorido, ervas, sementes ou raízes. A banca era, assim, uma longa manta de amarelos, laranjas, vermelhos, castanhos, brancos de vários tons, texturas, densidades. E verdes, e negros. Cada saco tinha a sua colher de medida pousada na pirâmide de pó. A minha mãe parava e pedia meio quilo de caril, austeramente. O senhor Abdul sorria, tentava vender-lhe o quilo, e iniciava uma lesta alquimia de pós cuja memória transportarei comigo no dia do passamento.

Tirava umas quantas partes de acafrão, outras tantas de noz moscada, cravinho, cominhos, anis, gengibre, pimentas diversas, pimentões, piri-piri, mostarda, canela e outros pós indecifráveis, em quantidades que só ele sabia, apresentando-nos, no final, sempre sorridente, o saco de papel cheio e a conta regateada.

Restava sobre a banca um odor intenso e uma poeira turva levantada pelo movimento dos seus braços e corpo alongados sobre os sacos. O caril não era igual em todas as bancas, mas todos os monhés criavam o seu próprio sabor, como mestres perfumeiros.
O tempo passado na área dos monhés foi sempre pouco, pelo que voltaria a esse passado para vivê-lo de novo. A minha mãe não se perdia nestes lugares, porque uma senhora não parava, caminhava sempre com fito doméstico, honesto, e eu precisava de me demorar para absorver o caos e organização das bancas. Fui roubada à contemplação demorada das zonas menos nobres do bazar. Restam-me impressões de panos pendurados pelas bancas, saris de todas as cores, padrões, materiais, repletos de brilhantes, e pessoas sorridentes ou não, de uma diversidade e beleza que suscita a curiosidade das crianças. Essa zona e a dos pretos, ao fundo, onde era tudo diferente, desarrumado dentro dos limites aceitáveis, com montinhos de tomate, piri-piri, carvão, batata doce, folha de abóbora e legumes que não comíamos, prendiam-me. Tostava-se, ali, amendoim e caju, no chão, e assavam-se maçarocas na hora, por uma quinhenta. Pode ignorar-se o paraíso e o inferno misturados num só lugar? E em nome de que maravilhamento viver, depois?
Subíamos mansamente em direção ao Alto-Maé, com o saco de caril na cesta de palha, entre os nabos e as cebolas, eu pela mão, passando pela catedral braquíssima, rasgando devagar a manhã amena, de uma claridade azul clara muito limpa, como nunca depois.
Como poderia eu saber, tão menina, que levávamos connosco, num saco de papel pardo, 750 gramas do melhor amor metafórico?
Demoramos toda a vida a decompor as emoções que aqui nos puseram, mas uma vida inteira não seria tarde demais para o amor. Como um caril, o amor não se compõe com açafrão e cominhos, apenas. Nem com cominhos, gengibre e noz moscada. Carece da quantidade certa dos inúmeros ingredientes, e esta é a base da qual se parte. Aceita-se a alteração das quantidades, ou dois ou três ingredientes que se substituirão sem mácula para o paladar, mas não existe mistura sem essa ponderada diversidade. No saco do amor existem todos os pós da banca do monhé Abdul ou talvez mais. Existem ainda as sementes, as ervas e raízes. Todos os sabores amargos, doces, ácidos, neutros numa combinação cuja essência se complementa, acresce ou anula, mas que resulta equilibrada ao paladar. Dir-me-ão que no amor não há raiva. Oh, mas faz-se caril sem salpicos de mostarda? Não há desprendimento? A que sabe o caril sem uma nozinha de libertador anis? E se os pós forem bem medidos, e contidos na dose certa, sim, juro, o amor cola-se, a galope, como um vício bom, à memória dos sabores. Uma memória de sede e fome que não se sacia, não é de menos nem de mais. Sem espaço ou tempo. Fica para sempre como uma memória de infância

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