Em mim, nela

Dei-lhe banho e ajudei-a a sair da banheira. Sentei-a num banco frente ao espelho, enquanto a vestia. Uma camisola interior fina, outra camisola interior grossa, a blusa do pijama, as cuecas, as calças, um casaco, as meias.
- Tens frio?
Não tinha.
A pele muito fina e seca, as costas dobradas em ângulo reto incorrigível; na anca direita, a marca de uma escara cicatrizada.
- Sentes-te bem?
Sentia.
- Agarra as mangas do pijama, para não ficarem dentro do casaco.
Era o que me dizia quando era miúda, "segura as mangas, Isabela, segura as mangas". E eu, fazendo ouvidos de mercador, sabendo que iam subir e dar uma trabalheira a puxar, mas não me apetecia. Nesse instante lembrei-me de mim, pequena, à sua mercê, frágil, contrariada, sendo não mais que a sua vontade e nenhuma outra coisa.
E sem querer, enquanto ela procurava o buraco da manga do casaco, olhei o espelho e vi-nos. Era eu a vesti-la. O meu corpo adulto, cheio de força. O seu, velho, torcido, de onde saí, agora dependente da minha ação, como se trocássemos de identidade. Era eu, mas não me via nitidamente. Via-me ela, antes. Via-a em mim nesse tempo. E por respeito desviei os olhos desse reflexo. Quis deixá-la ficar nesse éter vestindo-me enquanto eu resistia, e ela reclamava, "tens um génio que nunca nenhum homem te conseguirá aturar. "

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