A subalterna

Fotograma de Lolita, por Stanley Kubrik



A Nini chegou mais tarde ao colégio. O diretor chamou-me à sala das visitas. O que tinha eu em comum com Nini? Os pais em África. De resto, entrou na minha vida para me tornar mais consciente de que eu não prestava. Os meus cabelos eram claros, finos e quebradiços. As mamas grandes demais, a anca, as pernas. Celulite, miopia. Ventre dilatado.

Nini, magra, longos cabelos fortes, ondulados e castanhos-escuros repuxados nas têmporas, com intuito de ajaponesar os olhos, jeans muito justos torneando a perna fina, barriga chata, peito pequeno.
Eu era amiga e subalterna. A boa, a inteligente, a serviçal feia que lhe lavava as cuecas, a massajava aos sábados com loção hidratante, e se sentia amada por ser útil e tocar esse corpo tão perfeito como desejaria o seu.
Acompanhar Nini era uma fonte de stress. Nini atraía os olhares dos rapazes, e isso piorava a minha situação. Estando ao seu lado, facilmente veriam a bela e, dois passos atrás, o monstro. Íamos de férias, clandestinas, mentirosas, para casa da família. Viajávamos de comboio pela manhã azul e orvalhada em direção ao Alentejo. Depois, no apartamento desabitado que pertencia aos pais, onde nos refugiávamos das proibições e regras impostas às meninas, Nini queria ser uma estrela, vestir-se como uma, ir à piscina, à discoteca, aos bailes, e isso implicava despir, expor o meu corpo, a minha voz e alma triste. Os rapazes rodeavam-na. Chamava-me. Esta é a minha amiga, dizia. Eles riam-se, troçando de mim. Troçavam?! Certamente. Seria possível não troçarem, eu, tão feia, temendo a sombra humana como loba acossada, seria possível verem-me graça?! Ajeito-me a mim. O meu corpo tão teso que mais tarde sentirei dores nos músculos das pernas. Calo-me. Oh, esqueçam-me, por favor. Insultem-me, mandem-me para um lugar muito distante. Digam-me o que espero e não façam mesuras, como se me aceitassem. Sei que não. Digam-me, ó gorda, vai ver se lá fora está a chover, desampara. De bom grado ficarei encostada à porta dos bombeiros, escutando as grosserias dos velhos disformes, bêbedos, violadores reais ou mentais. Digam-me, olha lá, ó barril de banha, quando é que fazes dieta? Não fumas? Não, respondo. Não bebes?! Bebo. Pode ser qualquer coisa doce e muito alcoólica. Beber, bebia, claro. Beber era fácil, toldava primeiro devagar, depois sem freio.
Fumavam-se charros em grupo, e a gorda passava sem travar. Não queres? Não, obrigada. Obrigada?! Maldita eu. Aprender a falar, já que não sabia fumar, seria oportuno. Como é que falavam?! Iá. Passa, meu. Toma, pá. Não me bastava ser gorda, mas não conhecia os códigos, não sabia soltar-me, dizer coisas sem sentido, verdadeiramente jovens. Era straight. Tinha engolido o pau da vassoura.
No final da noite dormiria com ela na cama torneada dos pais. A melhor altura do dia. Conversaríamos antes de dormir, conversaríamos ao acordar. Confecionaríamos o jantar como se fôssemos um casal e comê-lo-íamos à luz das velas como crescidas e príncipe uma para a outra. Bem vestidas e penteadas, eu sempre feia, mas arranjadinha, falaríamos devagar, e já era o futuro. Pronto, agora eu já tinha 20 anos e o meu pai já me deixava namorar, onde quer que ele se encontrasse, e faz de conta que agora estávamos juntos; ela faz de conta que era o meu amor, e gostava de mim assim, assim tal e qual como eu era, com a barriga, o rabo, as mamas caídas. Sentia-me bem, o calor do amor, devia ser amor, percorria as minhas veias. O meu sangue fluidificava-se. Ser amada era bom. Agora não era gorda. Faz de conta. Agora esqueço isso de ser gorda. Somos só as duas e ela gosta tanto de mim e depois vamos dormir. Contar-me-á histórias de quando era campeã de motocross numa Kawasaki e campeã de ténis com o Bjorn Borg, que conhecia pessoalmente, de a ter cumprimentado, e campeã do sangue, porque o seu era único, o melhor do mundo, por isso é que os americanos da CIA a levavam todos os anos, nas férias, para uma infraestrutura subterrânea, num deserto, e a sujeitavam a todo o tipo de testes, em ambiente estéril, transportando-a de olhos vendados para que jamais pudesse seguir a pista, e ninguém sabia disto, só ela e os pais, e eu não podia contar, não, não contaria, claro, a quem iria eu contar uma coisa dessas, e se era segredo, era segredo, um sangue único, sim, e descobriram-no ao fazer-lhe testes por causa do desporto, sabe-se tudo e um dia chegaram junto dos pais e pediram para lhes falar - e também era campeã de wind sur, estás a ver esta foto?!, esta prancha que se vê ao longe, sou eu. Era um campeonato; ganhei o primeiro prémio. Também sabe fazer wind surf, como se não bastasse ter as mamas pequeninas e direitas e a cinturinha sem pneu! Perfeita. E depois deitávamo-nos nos nossos pijaminhas com lacinhos e o seu corpo era um sofrimento, uma quentura, uma perdição.

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