A sério como a vida alheia

Acabou de comer os doces que fiz. Arroz doce. Bolo de limão. Levanta-se da mesa, aproxima-se do meu corpo sentado no sofá, concentrado, e diz-me, baixando-se para me alcançar, vê lá a que sabe a minha boca. E prova a minha. Tem a língua fria. Sabe a canela, a uma saúde enxuta de comida caseira que cozinhei no meu lume, com as minhas mãos.

Beija-me com a língua, e a barba roça na minha cara, inflamando-me superficialmente a pele. Ergue-se e conclui, a tua sabe a chá. Estás a beber Earl Grey. Sorri. É um homem alto, elegante, grisalho, maduro. Um homem a sério.

Olho-o, pensativa, enquanto se afasta com os pires na mão. Queres mais alguma coisa, pergunta, de longe. Não, não quero, obrigada. Olho o écran da televisão sem ver. Há cores, movimento. Não vejo. Penso.

É tudo tão novo: ser beijada, ter um amor que dorme o meu sono, ao meu lado, sentir-me estimada, querida. Tudo a sério. Sem medo, sem obstáculos. Parece-me a vida de outrém. Isto devo ser eu noutra reencarnação. Estranho a mudança. Que fiz para merecer os beijos?! Valia alguma coisa? Não sou repelente?! Conseguem aturar-me?! Mas que raio de solteirona sou eu, afinal? E a gorda?! Onde está essa mulher assustada com a qual vivi a vida inteira, que conheço tão melhor que ninguém?!

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