Yo no te olvidaré

 Ilustração de Andrew King

Sento-me com a cadela na esplanada e ele vem vindo ao longe, sorrindo, com cabelo despenteado já a ralear, mãos nos bolsos, camisa amarrotada, sorrindo por me ver e pela consciência da sua dádiva de muitas vidas. Está um belo dia de sol que aproveito lendo, olhando em redor, escutando as conversas das mesas vizinhas. “Ela não avisou. Levou o miúdo e não disse nada”. “O tarifário que tenho agora é muito melhor”. “Quero lá saber que arranje outra: comeu-me a carne, há-de roer-me os ossos”.
A estampa aproxima-se. Diz-me:
- Sento-me, claro.
Respondo-lhe, sorrindo:
- Claro.
Tão bonito. Tão feliz. A pele morena. Os dentes certinhos. Olhos vivos e brilhantes. Luminoso. Olho para este homem luminoso que calhou ser meu pai.
Digo-lhe:
- Não tinhas ido já para o outro lado? Pensei.
- Devia.
- Então?!
- On the other side come-se mal e bebe-se pior, dear.
Atiro uma gargalhada sonora. As minhas gargalhadas vindas do estômago. A cadela assusta-se. Os utentes da esplanada olham-nos com desprezo. Continua:
- Tu não estás lá para conversar, rapariga.
- Mas olha que começa a estar na hora de mudares de endereço postal. Por mim podes andar por cá. Continuo a gostar da tua companhia. Aliás…
Calo-me. Conheço tão bem este sentimento de falta. Ele com a barba por fazer a raspar-me a pele da cara, o seu sorriso escancarado, sem vergonha, sem medo, ávido de vida e luz, e bebermos e comermos, e passearmos no comboio da praia, rir do vizinho que limpa o pó ao carro todos os dias, congeminar brincadeiras.
- O serviço de restaurante é mau desse lado?! (faço-lhe uma festa na mão bonita) Pai, ser gordo é toda uma filosofia que só outro gordo entende, não achas?!
- É uma merda para atacar os sapatos, mas um quadradinho de chocolate a derreter-se na boca… uma bela dobrada com feijão, picante, bem regada…
- Queijo da serra com um vinho, suave, aveludado… Os prazeres dos sentidos! Isso já não deves ter!
- Nada. Sentidos nem pensar. O sentir está todo aqui. Lá, é aprender e esperar. E sou como as virgens: não estou preparado. (ri-se) Bem, antigamente dava um trabalho até estarem preparadas! Mas esta esplanada, onde podes vir sempre que te apetece, é a maior dádiva que Deus te dá. Tu ainda tens tudo.
Estiro-me na cadeira. Pergunto-lhe:
- Lembras-te do sabor do uísque com soda e bastante gelo?
- Cala-te, rapariga!
Olha para mim, muito sério.
-Tens feito a dieta que te cabe?
- Tenho pecado muito.
- Porquê?
- A maldita fome.
Suspira.
- Prometeste que não ias seguir o meu caminho.
Respondo:
- Não vou.
- Mantém-te gorda só na cabeça. Só na cabeça, ouviste?
- Sim. Ouço. Descansa. (pausa)
Faz-me bem ver-te, falar-te. Nunca me sais da cabeça. Tudo o que existe no meu mundo existe em função do que vivemos. Se vejo o anúncio do Mac Donalds lembro-me que gostavas dos filetes de peixe. Se me deparo com a foto de um gato parecido com o Gimbrinhas, lembro-me do dia em que o trouxeste para casa. Não sei viver sem a bengala do que foi a nossa vida, talvez o nosso amor. Achas que nos amámos?
- Oh, mulher, até nos dias em que andámos à pancada.
Rio-me de novo.
- Lembras-te?!
- Então não lembro, rapariga!
- Fomos tão parvos. Dois gordos tão loucos, tão bipolares, tão…
- Amantes.
- Isso.
Encaro-o. Procuro os seus olhos. Não fazemos um gesto. Olhamo-nos e ao olharmo-nos percorremos esta vida dele, a minha, e as restantes, que não conhecemos já.
Repito:
- Isso, amantes.
Digo:
- Tínhamos de nos encontrar.
Digo:
- Vamos passar o tempo do tempo a encontrar-nos. Gordos, cheios de fome, e um do outro, como se o nosso destino fosse tão só o usufruto do que vamos sendo. E depois, esta fome que temos, que é estúpida, não a achas estúpida?!
- Não. Quero lá saber. Comer e beber sabe bem. É o que se traz. Acredita. Isso e gostar das pessoas e dos lugares, dos cães. Os sentidos. Os sentimentos. E respeitar Deus, rapariga, sempre respeitar Deus.
- Queria era resolver a fome. Nunca pensaste nisso? Como matá-la. Acho que sempre foi uma insatisfação, um poço de solidão, de tudo o que queria fazer e não pude.
Passa a empregada, de cabelos compridos negros, brincos caídos com brilhantes em triângulo. Dá-se mal com o pai que lhe mostrou a porta da rua. Aproxima-se da nossa mesa:
- Beleza, traga-me uma Coca-Cola e uma tosta mística, que a conversa da minha filha está a pedi-la.
Ela ri-se. Eu rio-me.
- De tudo o que quiseste fazer e não pudeste?!
- Esta vida é de merda, agarrada ao trabalho escravo para sobreviver, para pagar as contas. Fiz tudo o que quiseste, tu e a mãe: garanti a sobrevivência, mas, querido, não chega. Quero saltar: viajar pelas pessoas e lugares, dormir na terra com os lobos, comer com as mãos. Quero visitar ruínas e museus. Quero ver, pensar, imaginar, criar coisas. Está tudo errado. Tu e ela pensaram de acordo com o vosso tempo, pensaram numa vida para mim de acordo com o que eram as vossas expetativas: emprego e dinheiro certo, baixar a cabeça. Calar. Eu não sou assim, pai. Oh, tu sabes tão bem que eu não sou isso! Mas acabei por também ser uma parte do que vocês fizeram de mim, toda essa moral católica, precavida, misturada com a euforia do voo. Estou presa a vós. Presa a mim.
- Tu és maluca. Sempre foste maluca. Tens tudo aquilo de que precisas. Mais que muitos. Mais que eu, que a minha família e a da tua mãe juntas.
- Não. Não.
- Dei-te tudo o que tinha. Trabalhei muito. A única forma de te preparar para a vida era garantir-te o trabalho certo. Nem eu nem a tua mãe sabíamos quem tu eras, ao princípio. Não conhecemos os filhos que nos nascem como não conhecemos os pais dos quais nascemos. Acontece. Agora sei. E a tua mãe percebe mais do que admite… mas não podíamos imaginar que o trabalho de repartição não te chegaria. Fizemos o melhor.
Vem a Coca-Cola e a tosta mista. Sorri-se para a empregada.
- Muito obrigado, menina. Se tivesse uma esplanada roubava-a para trabalhar para mim.
Ela ri-se, embaraçada. “Só se me pagasse bem”.
- Pagava-lhe o que a menina quisesse, que um sorriso como o seu vale tudo.
Dou-lhe um pontapé debaixo da mesa.
- Deixa a rapariga, pai.
- As mulheres gostam de ser apreciadas. Já te expliquei muitas vezes.
- Gostam, mas exageras. Pensas que estamos nos anos 50?!
Conforma-se.
- Serias mais feliz como? O que queres tu?
- Não sei. Pensava apenas sobre a fome. A minha, pelo menos. De onde me chega a vontade de comer o mundo?
- Vives muito dentro de ti. Acumulas. És muito só.
- Não. Já não tanto. Tu não sabes. Já não estou tão só. Agora tenho um namorado a sério. Não é uma ilusão, uma obsessão, uma maluquice. Gostei dele. Declarei-me
- (Ri.) És bem filha do teu pai! Não deixas créditos por mãos alheias. Eu já sei, mulher, e escolheste bem. Demorou, mas foi. Estava a ver que não desencalhavas... (Ri.)
- O homem é quase igual a ti, sabias?! Eu precisava... Não havia ninguém. Quer dizer, até o encontrar...
- (Sorri como se soubesse tudo) Mas olha que nenhum namorado pode colmatar a tua solidão.
Demoro tempo a responder:
- Talvez não.
Continuo:
- É um silêncio branco, um espaço vazio que consome tudo, tudo o que passa. Uma espécie de cromossoma com consequências invisíveis para o comum mortal. Mas eu sei. Eu vejo.
- Quando te sentes saciada?
- Quando me alheio da realidade. Com os livros, a música, filmes. Gosto de ver quadros em livros e nos museus. Agora na internet. Escrever tanto me dá fome como ma tira. Depende.
- Muda de vida.
- A mãe mata-me.
- Não mata. Aceita. Já começaste a mudar no momento em que pensaste nisto. Arrisca.
- Fico sem rede.
- Bem, ficas. Ou te equilibras, e tudo bem, ou cais, e tudo mal.
- Arrisco?!
- Eu era o que faria, se estivesse no teu lugar. (pausa) Olha, lá, esta cadela também sofre do tal silêncio branco, do vazio que consome tudo?

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