Os clientes dos nazis das sopas


A minha vida está toda explicada no Poema do Funcionário Cansado, do Ramos Rosa, aquele cujo chefe o apanhou "com o olho lírico na gaiola do quintal em frente". A diferença é que chego a casa às dezanove e quinze, pouso as malas no chão, com descrédito e desprezo, levo a cadela à rua, e atiro-me para cima do sofá, pensando, obrigada, senhor, por afinal não me teres dado filhos, e, logo a seguir, por amor do teu Sagrado Filho concede-me, agora, ao menos uma horinha de apagamento na terra do jamais. E apago.
Ontem, foi mais de uma hora. Acordei eram umas vinte e três, fui à cozinha, bebi água, comi uma laranja, pensei, que se lixem as notas, acordo amanhã às seis da matina, mas aproveito este balanço. Meti-me na caminha com a Morena, mas nada. O segundo apagamento não só não se revelou, como se transformou numa lista de assuntos pendentes que a funcionária cansada adiava para o dia seguinte.
Levantei-me e retornei à sala para ver um episódio gravado do Seinfeld vintage. As outras pessoas não sei, que eu nem o meu vizinho do lado conheço, mas do que gosto mesmo é de uma boa risota. Édipo pode furar os olhos, Medeia matar os filhos, mas nada me expurga a alma de funcionária cansada como uma risota das antigas. E ontem tive sorte: calhou-me o episódio do nazi das sopas.
Não sei se já foram agraciados com o episódio do nazi das sopas, mas a ação anda à volta do seguinte: há um take-away onde se comem as melhores sopas da galáxia, gerido por um argentino excêntrico, que obriga os clientes a cumprirem regras para acederem à sua divina sopa. As regras não fazem sentido, mas não desencorajam a fila à porta. Os engraçadinhos que julgam poder conquistar o dono com sentido de justiça ou um palminho de cara, rapidamente soçobram, expulsos sem a sopa, servida ao balcão, à frente do qual se deve permanecer em silêncio e direito, fazendo o pedido como um soldado raso identificando-se ao general. Nomeada ao sopa pretendida, dá-se um passo de lado para a esquerda, seguido de um segundo passo exatamente igual e também para a esquerda, por esta ordem, e a funcionária da caixa entregará, com sorte, o saco com a desejada sopa. Nada de piadas, nada de reclamações. George, por exemplo, foi expulso por reclamar a falta de um pãozinho no seu saco, e Helen, porque gracejou, denotando semelhanças físicas entre o nazi das sopas e Al Pacino. Seinfeld, vendo-se na eminência de não receber o seu tesouro por se encontrar na fila aos beijos com a namorada, alegou não a conhecer, terminando assim o namoro.
Seinfeld sempre me fascinou, porque encena a vida quotidiana com as suas incoerências, obsessões, fobias, egoísmos, defeitozinhos sem os quais a existência podia ser a paz dos deuses, mas uma paz sem piada, sejamos realistas. Se pegasse nas pessoas que conheço, e em mim própria, e as metesse numa série do género, a risota seria a mesma: o que fazemos e dizemos e desejamos, e a forma como o manobramos, é risível.
Mas o nazi das sopas é especial. Porquê? Bem, é chato admitir, mas o que o nazi das sopas me deixa perceber é que estamos dispostos a tudo por uma recompensa, mesmo que tenhamos de a comprar ao preço da honra. Queremos cumprir as regras para chegar ao reino dos deuses, mesmo que para chegar ao reino dos deuses tenhamos de ignorar a justiça, o amor e a moral. Queremos, gostamos de cumprir as regras. Fomos domesticados para isso. Ainda a semana passada não consegui resolver um problema de palavras cruzadas porque não me veio como sinónimo, em momento algum, domesticar como "educar". Mas era. Numa série, faz-nos rir. Todos os dias, pelo mundo, deveria enraivecer-nos - não enraivece: estamos habituados e já nem sabemos viver de outra maneira.

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