Os lugares onde fui feliz

A Raquel escreveu, ontem, no Facebook, um pensamento que lhe ocorreu, relacionando o seu regresso a Cuba com uma afirmação de Carlos Esquivel: "nunca vuelvas donde fuiste feliz, porque es peligroso ser feliz dos veces".
Li, não comentei, e pus-me a pensar onde é que tinha sido feliz, mas estava difícil. A infância era para esquecer, e também a adolescência e adultícia, mas tal escandalosa ausência de memória pareceu-me injusta - temos a felicidade em alto conceito: só nos satisfazemos com coisa muita. Com esforço, a memória apresentou-se.
As tardes de Julho, em 1976, em que descia, com o Farrusco, a ladeira da fazenda do meu tio, na Boavista, para colher e comer, no instante, pêssegos gordos e quentes. A seguir, a água gelada da mina resguardada pela ameixoeira frondosa que depois abateram. Bebíamos ambos a mesma água na gruta escura que fazia eco.
Em 1986, quando eu e O Meu Amor fazíamos amor, o Pantufa costumava roer os bocados de lençol nos quais tinham caído restos dos nossos fluídos genitais. A minha mãe não compreendia os buracos na roupa de cama, nem eu conseguia explicar-lhos.O cão era maluco, dizia-lhe. O cão não batia bem da bola. Juro que me ri ao recordar isto. Acho que ainda tenho uma colcha indiana toda roída.
Houve um dia de Agosto, em 1995, se não engano - estávamos acampadas em Carrazeda de Anciães, num parque todo de pedra e silvas onde colhíamos amoras bravas, negras e doces, do tamanho de peras. Íamos comê-las para a borda do tanque a que chamavam piscina, sempre seguidas pelo cão do parque, com olhos chorões e orelhas caídas. Eu sentia medo do tanque, porque a água era escura e havia folhas  flutuando à superfície. Imaginava que seres maléficos me puxariam do fundo, portanto não me banhava. Temo os seres mágicos. Tinha um fato-de-banho azul escuro, e os olhos muito claros como uma cigana. Há uma foto na qual me vejo assim. Nessa madrugada choveu muito, a tenda meteu água e recolhemo-nos à pressa no Opel, com o cão do parque, que cheirava muito mal molhado pela chuva. Não cabíamos ali metidos com todos os pertences, mais o cão, e não sabíamos se havíamos rir da situação ou chorar do sono e da humidade metida nos ossos. Esse amanhecer depois da chuva, macerada pelos imprevistos, foi o mais puro, o mais lavado que contemplei.
Uns anos depois, em Álcacer, lembro-me de me levantar de noite para enfiar um Nimed pela goela abaixo do Putchi, que tossia deitado no sofá da sala. Tinha uma tosse crónica irritante, mas era um alívio dar-lhe o anti-inflamatório e sentir o ataque passar-lhe. O Putchi foi, de todos os cães que conheci, o que pior cheirava. Era o cão velho do meu senhorio, e tinha feito uma grande carreira na caça. Dormia em minha casa para não ficar ao relento.
Lembrei-me, ainda, que o ano passado, ao Domingo à tarde, ia apanhar pinhas com a Micas e a Morena para a Ponta dos Corvos, e a felicidade das duas enchia-me o peito de risos. Às vezes eram dias escuros, com um céu de chumbo azul. E vi de novo os olhos da minha Micas, senti as festas da minha Micas e as saudades inteiras como um grande saco de areia a embater-me no corpo. Fomos felizes.
Se tivesse tempo, é possível que me lembrasse de mais momentos, mas até agora cheguei à conclusão que, se calhar, todos os meus lugares felizes têm nome de cão.

Mensagens populares