Quero que pense que sou como as outras


  Foto: Monika Wiechowska, Resting at the sun

Não acredito na primavera nem na fonte inicial e pura. Peço perdão, mas não fumo cachimbo nem tive criadas de farda com gola de renda imaculadamente branca, pelo que o sentido poético da vida não encontrou o habitat ideal para medrar, proliferar e deixar-se admirar.
Sou bruta como um muro pintado a cal, com trincha das antigas, por uma velha toda vestida de negro, praguejando ao longo do trabalho.
O meu pai era do melhorzinho, oh, se era!, mas se fosse vivo havia de me fazer a vida negra com expectativas, e chegada a esta idade, o que eu quero é que me deixem dormir a sesta em paz. E as noites, e as manhãs. Deixem-me sossegar o dia inteiro e não me peçam documentos para hoje à meia-noite nem notas para amanhã. Estou-me nas tintas. Despeçam-me! Sinto-me tão imune a humilhações e a quem me lê os textos à espera que eu escorregue, e senhores, se escorrego, hora sim, hora mais ou menos - a minha maior virtude, ter uns pulmões impecáveis ao léu, todos limpinhos! Os espreitas da escorregadela façam o favor de me denunciar ao sistema, para que impiedosamente me cuspam fora, que eu não consigo cuspir-me sozinha.
Não acredito na primavera nem no pai, mas quando vou a casa da mamã não lhe conto nada: levo-lhe a dentadura, dou-lhe a sopa, o segundo, a sobremesa, faço-lhe o chá, o lanche e o jantar, pergunto-lhe pelas malandrices do cãozinho nova da dona Chinita, pelo enredo das novelas, pela sermão do padre na missa, peço-lhe a lista dos almoços da semana, escuto a lista dos achaques que a atormentaram, conto-lhe histórias inofensivas, fechou aquele restaurante, fui fazer a mamografia, mas ainda não a fui buscar, a seca vai longa, não chove, o frio, corto-lhe as unhas e o cabelo, e falo calmamente, como se tudo corresse sobre rodas bem oleadas, porque a minha mãe é como uma criança que se deve poupar, porque ainda acredita em mim. Isso quis dar-lhe sempre, a ilusão de que era como as outras, pensava como as outras, nada mais desejava, sonhava. Ou seja, era outra. Não sei se sabe que sou cruamente eu. Às vezes, há certas palavras, frases que lhe saem, que me levam a pensar que talvez o intua. Mas o ideal seria nunca perceber que pariu a semente da asneira e da verdade, na construção possível em que ambas viajam vertiginosas num mesmo corpo.
Amo a primavera e o meu pai, mas acreditar, para ser sincera, só na minha mãe, que nunca saberá que eu sou eu e não a outra. E convém que fique assim.

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