Vou para a cama em troca de favores

Foto: Steve McCurry

Um dia hei-de escrever sobre o momento em que perdi a inocência e terei de regressar à manhã de hoje.

Hoje fui para o café ler jornais atrasados. Gosto muito. De café. De jornais. De atrasados. Tudo me ajuda a compreender o funcionamento do mundo e o espanto domina-me. As notícias interessam, mas o subtexto paralisa-me de revelações. Leio sobre acordos, apoios, parcerias, financiamentos improváveis, ligações imprevisíveis, vou tomando nota dos nomes de colunistas, cuja especialização me surge sobremaneira opaca, e, quando acordo desa imersão, tenho na mão a chávena com café já frio enquanto o olhar vagueia.

Ao longo da história, através de todas as civilizações, a cama tem conseguido milagres, suplantando as leis da moral, do bem parecer e dos códigos judiciais. É uma lei paralela, marginal, não assumida, mas com mais poder que qualquer outra. Aprender a dormir com as pessoas certas é conteúdo que deveria fazer parte de qualquer cadeira de deontologia. Porque, sejamos realistas, mais cedo ou mais tarde, sabemos bem, é o único recurso para se desbloquear uma verba, resolver um emaranhado judicial, financiar um projeto, arranjar um lugarzinho. Tanto nos negócios bancários como nos da agricultura, pesca ou cultura. A caminha, em Portugal e no mundo, é sagrada.

Eu sei que na nossa terra nunca se diz a verdade. Por exemplo, desde que a crise começou toda a gente se queixa de falta de verba, mas sempre no ar, de forma muito geral - ninguém assume que deixou de ter dinheiro para pagar dívidas que anteriormente não tinha dificuldade em saldar.

Eu tenho uma nacionalidade muito misturada, como expliquei esta semana ao senhor Simões, e toda a gente sabe. Por outras palavras, não sendo excessivamente portuguesa, sou acometida por uma incontenção que não afeta os restantes compatriotas que vivem a crise com normalidade.

Desde o último Verão que deixei de conseguir satisfazer as minhas dívidas normalmente, o que aconteceu por razões muito simples: o valor do meu salário não se alterou em dez anos, embora eu tivesse mudado de escalão profissional por duas vezes - os aumentos consequentes ou foram congelados ou imediatamente eliminados pela subida do escalão de IRS na fonte ou pelos aumentos do IVA fora dela. Há 10 anos, o custo de vida era incomparavelmente mais baixo, a minha mãe ainda podia valer-se, e eu não pagava o salário à pessoa que hoje cuida dela, pelo que o que me sobrava ia sendo investido em pós-graduações, mestrados, viagens, livros, cd’s e arte, de forma geral. Houve tempos em que comprava quadros a amigos artistas como forma de lhes subsidiar os cursos. Dei dinheiro para associações de proteção de animais e de vida selvagem. Financiei, a fundo perdido, expedições alheias a África. Tudo o que tive, fui dando, e não me arrependo do altruísmo, salvo uma exceção, muito localizada..

Mas regressemos ao dia de hoje: não havendo alterações no valor do meu salário há 10 anos, não sendo eu herdeira, não me tendo saído o euromilhões, não tendo ficado rica com direitos de autor, e tendo aumentado o valor dos meus débitos, não é preciso ser especialista em contabilidade: vejo-me todos os meses em sérios apuros.

E volto aos jornais, ao momento em que me ocorre que a maior parte dos problemas do mundo, sobretudo os que envolvem dinheiro, se resolvem na cama. Custava-me muito foder com o homem ou a mulher certos para ver o meu estilo de vida melhorar? Depende, claro. Depende do que estaria envolvido nessa transação de carne. Teria de colaborar muito? E quantas vezes? Quais os custos reais do negócio para a minha liberdade de espírito, consciência e mundividência? Fodia durante um mês, sorria, fingia e acabava ali? Se o assunto não transcendesse o físico, se conseguisse manter a dignidade pessoal de uma menina com educação católica, cristã, e, ainda para mais, feminista, talvez fosse possível iludir o fator prostituição. Seria apenas um subgénero da referida ação, confinado a uma situação concreta, como num filme americano para grandes audiências.

O dinheiro não tem valor real. Nunca teve. Serve para garantir conforto e saúde. O corpo é um invólucro muitas vezes mal usado. Já usei o meu pessimamente, já o sujeitei a sevícias diversas que não desejo aos outros. Que valor tem, para mim, o meu corpo? É sagrado ou posso pô-lo a render?

Enquanto penso nisto lembro-me dos valores que recebi, do cuidado que tiveram com a minha educação! A minha dignidade deveria sempre estar salvaguardada, e entre ela e a honestidade existiam vínculos indissolúveis. “Sê digna, sê honesta”. A minha valorização pessoal viria da dignidade, da honestidade e da independência que me estaria assegurada pelo rendimento do meu trabalho. Ora, alguma coisa falhou nesta equação, porque eu trabalho que me farto.

E retomo o dilema atrás enunciado, resultante da leitura dos jornais no café, esta manhã: em que medida posso resolver todos os meus problemas indo para a cama com alguém sem perder a minha dignidade, sem profanar a forma como sempre vivi, encarei os outros e o mundo? Isto pode parecer de somenos importância, mas é que me dava mesmo jeito ir para a cama com alguém em troca de favores.

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