Mulhecadelas


Era uma vez uma cadelinha com patinhas brancas de cabra com muitos pelos interdigitais macios e despenteados que cobriam as suas unhas como botinhas de inverno.
Era uma vez uma dona que gostava de beijar as patas da sua cadelinha e de estar calada e não ouvir barulho.


Estavam sempre juntas, e, embora comunicassem, nunca falavam, o que era ouro.
Quando dormia com a sua dona, que gostava muito dela, a cadelinha virava-lhe as costas. Nunca lhe dava o focinho e não se percebia porquê. Talvez a incomodasse a respiração humana. A dona, pelo contrário, suspirava pelo cheiro a baba doce da cadelinha, e virava-se para ela, fazendo peso do lado da anca que lhe doía menos, beijando-lhe os quartos traseiros muito gordinhos; depois enfiava o braço direito entre as  patas da cadelinha, deixando-o encostado à sua barriga quente; pouco depois, chegavam-lhe os calores caninos, levantava a cabeça arfando, e por muito que  dona lhe dissesse, não vás, deixa-te estar aqui quente e docinha, era inútil, ia. A dona deixava, pois que remédio, e ela deitava-se muito encostada às suas pernas, sobre a colcha, suspirando fundo. A dona conformava-se. Suspirava também. Ajeitava-se ao seu corpo velho com dores e cicatrizes verdadeiras.
Quando acordava, durante a noite, procurava-a no escuro, de olhos fechados. Encontrava-lhe o dorso, a cabeça, uma pata, que afagava. Não lhe dizia nada. Só aquela festa. A cadelinha acordava do sono profundo e gemia ligeiramente. Sim, sabia que estavam ali, e adormeciam ambas cientes do indizível que as ligava.  Muitas vezes, a festa levava a cadelinha a levantar-se para voltar à posição inicial. Deixava-se de novo cair em peso, encostada à almofada, do outro lado da cama. A dona beijava-a nos quartos traseiros, dizia-lhe, estás friazinha, tapava-lhe as pernas, e adormeciam dormentes. Gostavam de dormir juntas, porque quando dormiam ficavam com os sonos misturados. Eram duas mulhecadelas dormindo, e falavam a mesma linguagem, não havia diferença. De manhã, acordavam siamesas. Era esse laço que as ligava. Tudo nelas era diferente, era  intuição e rotina. Tudo nelas era só aquilo que podia entender-se e nada mais.

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