Em verdade vos digo, meus irmãos


Eu e o ministro das finanças temos um método em comum: gostamos de explicar tudo muito devagarinho. Siga-se, portanto, a explicação: eu sei o que é uma crise das valentes, porque já passei por uma em situação de fogo real. Já saíram de casa assolados pela incerteza do regresso, perguntando-se se conseguiriam atravessar a estrada com vida? Já suaram a experiência de metralhadoras de origem soviética apontadas ao tórax? Já açambarcaram farinha para fazer pão, mesmo sem fermento? Já açambarcaram qualquer coisa que aparecesse, porque poderia vir a ser necessária, para vender, trocar, sabe-se lá? Já fizeram sabão caseiro com potassa e óleo? Já perderam tudo, mesmo tudo o que de material e emocional se pode perder, mesmo que temporariamente? Eu já! Estávamos em 1975, em plena descolonização. Juro: aquilo foi a sério!

Em verdade vos digo, meus irmãos, que nada de bom se aprende numa crise, porque nela não há valores nem moral nem grupo: é cada um por si em nome da sobrevivência. Não arriscamos a vida para salvar ninguém, porque primeiro convém-nos salvar a nossa, e todos os que morrem são bocas a menos. Em crise, regressamos ao que guardamos de mais animal: comer o que houver, beber água limpa, dormir em segurança, desenrascar esquemas para proteger a nossa vida e a dos nossos. Nada mais. Se chegar uma saca de farinha para divisão pela comunidade, dá-se início a uma guerra civil para acesso ao alimento, que acabará espalhado pela terra e sem uso. O desespero não une. Corrói, mata a fraternidade.

Não acreditem, portanto, que vamos sair da crise mais sábios e mais fortes. Aqueles que dela saírem, sairão apenas vivos. Digo-vos isto, porque eu saí de uma e só trouxe isso: vida e os meus valores. Não foi  mau. Tive sorte. Os tempos eram outros: não só tinha acabado de entrar na adolescência, como acreditava numa ideologia começada no Maio de 68. Tinha esperança na humanidade, no progresso, na educação, na maturidade. Hoje, é diferente. Ter perdido a esperança. Não acreditar. Nem na educação. O que farão os meus alunos, nos tempos mais próximos, com a educação que agora recebem? Não consigo prevê-lo, e assusta-me.
Ao acordar, de manhã, olho lá para fora, abro o email, verifico os titulos das mensagens da escola e parece que tudo está igual: o metro de superfície continua a circular, as crianças fazem barulho na escola primária, há uma ação de formação sobre quadros interativos e outra sobre segurança na internet, o despacho normativo x, sobre exames, foi revogado pelo despacho normativo y, sobre exames. Mas, para mim, já tudo mudou. Não adianta manter a fachada. Eu já vivi isto: já vi esta aparente normalidade mudar devagarinho até atingir o insustentável. Por isso, deixei de ler emails sobre ações de formação e despachos normativos, e ao olhar lá para fora pergunto-me "quanto tempo ainda?".

Soar-vos-ei catastrofista, bem sei, mas é que é a minha segunda vez. Consigo ouvir um barulho próximo de máquinas descontroladas, prestes a colidir. Consigo ouvir o barulho de peças que se vão partindo e caindo ao chão. Reconheço-o de há trinta e tal anos. Garanto que o ouço todos os dias e que sei como vai acabar. É por isso que vos digo, irmãos, muito devagarinho, que embora a 2012 se siga 2013, convém agir depressa para que consigamos continuar a olhar-nos na cara uns dos outros como gente.

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