Há quem nasça com jeito para tudo

Era o último dia para meter o IRS e o desgraçado andava a mexer na papelada, essencialmente por não suportar mais coimas de atraso.
Abriu a folha e ficou a contemplar o documento, procurando entendê-lo. Ah, era aquilo do telefone com a assinatura da mãe, toda bonitinha. Toda bonitinha? A assinatura da mãe? Não seria uma das falsificações que se via obrigado a fazer sempre que lhe diziam, "o papel tem de vir assinado pela sua mãezinha", e ele ia ao carro, sentava-se, olhava para o BI da mamã, ensaiava calmamente o desenho de cada letra, e ia escrevendo, com caligrafia da primária, inclinada para a direita, Maria Deolinda... A mãe estava velhota e sem paciência para escritas; via mal, custava-lhe escrever.
"Só amanhã de manhã, Mário, agora estou cansada, já não consigo", e ele lá assinava a urgente autorização pedida pela empresa de televisão por cabo. "Hoje está a tremer-me muito a mão", e o filho assinava o formulário da eletricidade, obrigando-se a tremer para que a assinatura saísse verídica. Era a assinatura de uma pessoa velha, cujas mãos tremiam, portanto, deveria ser igual à do BI, sim, mas tremida. Falsificar uma assinatura não era muito fácil, mas falsificar uma assinatura e as condições físicas da sua produção era de mestre. Por isso, olhava agora para o papel do telefone e interrogava-se, das duas uma, ou a mãezinha estava num dia mesmo muito bom ou ele podia ganhar a vida a fazer aquilo.

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