Sobre os primeiros passageiros a entrar nos voos das companhias de baixo custo



Ainda eu vou a caminho da casa da banho para me pentear, passar o gloss e fazer um xixi, e já os meus companheiros de viagem voaram em direção à porta de embarque. 
Os voos das companhias de baixo custo, sem lugar marcado, motivam comportamentos dignos de análise sociológica. E trata-se apenas de uma viagem de avião com lugar para todos, não da corrida pela sobrevivência, por enquanto.
Assim que o número do portão de embarque é anunciado nos painéis dá-se início à caminhada dos 100 metros sem barreiras. Os passageiros movem-se apressadamente, concentrados, em bloco, tentando, apesar de tudo, mostrar-se compostos e controlados. Não estão supostamente a correr para ficar o mais próximo possível do balcão onde se realiza o embarque, mas apenas a aproximar-se diligentemente do local onde este se realizará. Aí, manter-se-ão em filas separadas: os primeiros a entrar formam à esquerda; os restantes, à direita.
Como se organizam na primeira fila os passageiros das low cost que compram o direito a embarcar em primeiro lugar? Observo-os e vejo como se sentem tensos, tão nervosos como os outros. Entre esses trinta, quem será realmente o primeiro, o segundo, o terceiro, o décimo-segundo e o trigésimo a entrar? Como se organiza a competição entre os first on board? Terá valido a pena gastar mais? Diminuiu-lhes a tensão, o medo de ir no lugar do meio, ou atrás ou de não ter espaço para a mala?
Ocorre-me: e se ninguém adquirisse o direito à pertencer à primeira lista de embarque? Deixaria de ser necessária, mas os passageiros continuariam, indubitavelmente, a precipitar-se para chegar primeiro e obter os que consideram os melhores lugares, ou seja, as janelas ou coxias. Mas haveria mais nervosismo ou seria igual? Na minha opinião, seria igual ou menor. A observação leva-me a defender que haver quem se disponha a pagar para entrar primeiro gera um medo irracional que influencia todos os passageiros. A partir do momento em que existem primeiros, as pessoas tomam viva consciência de que são segundas: assim, não só desejam, naquele momento, não o ser, integrando o primeiro grupo que as livrará dessa secundarização, como ignoram que na primeira fila a concorrência se mantém igualmente feroz entre eventuais primeiros-primeiros e primeiros-segundos. A existência de um primeiro grupo  de embarque antecipa a imediata lembrança da possibilidade de se ficar mal sentado, eventualmente entre um homem muito gordo e uma mulher que cheira mal da boa. É por isso que desatam a correr irracionalmente, acotovelando-se em direção ao portão de embarque, primeiro, e ao avião, em segundo. 
Contudo, ironia das ironias, nada pode impedir que ao lado da primeira pessoa a entrar, ou imediatamente à sua frente ou atrás, não se sente o último passageiro a cruzar o portão de embarque, imaginemos que uma espécie de indigente relaxado, meio bêbedo, sujo e transpirado, que ganhou o bilhete num concurso do Manuel Goucha. A natureza das coisas é incerta e aleatória, mesmo que bem paga, o que faz da vida um interessante território cheio de caminhos tortos que nos pareceram direitos ou mesmo o contrário. 
Há nisto uma justiça qualquer que não compreendo, mas me faz rir umas vezes, e chorar, outras.

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