Ela foi minha escrava

Foto: Tina Modotti

Meto a mão na gaveta das cuecas e tiro um soutien. Volto a enfiá-la na dos soutiens e saem-me umas meias. O Sr. Simões diz que eu não sou organizada, que me mudaria a casa toda.
Mas houve uma altura em que fui organizada. Era adolescente, vivia pelos meus meios, depois durante a travessia dos 20, início dos 30, sofrendo ainda as consequências da luta que foi resistir à tristeza. Organizar o que me dizia respeito foi, julgo, uma forma de controlar o mundo. Organizar a minha vida e a dos outros, não permitir desvios. Era implacável nisso.
A partir dos 40 mudei. Passei a chegar atrasada, a não ter agenda, a não arquivar papéis. Depois da psicanálise voltei ao tempo em que tinha a cabeça noutro lugar, imaginando. Foi o regresso ao passado de menina, e já não saí desse nicho morno de conforto e inocência. 
O senhor Simões diz que piorei depois da psicanálise. Para os seus padrões de contenção, admitamos que sim. Incontive-me desde aí.
Hoje, enquanto tirava um soutien da gaveta das cuecas, perguntei-me “porque sou assim”? A minha mãe não me ensinou a ser organizada?! Que exemplos recebi, mesmo que não mo tenha ensinado?! Revi o passado. Não, não me lembro da forma como a minha mãe organizava a roupa ou as louças ou sequer  onde as tinha. Quando era pequena fazia o que me mandava, sempre obrigada, mas inventando mundos ou fantasiando com o Gianni Morandi. Nunca estava lá, estava dentro de mim. Hoje, da mesma forma, realizo as tarefas caseiras alheada da realidade, magicando projetos, ideias, escrevendo textos na cabeça, que depois me apresso a apontar, parando de aspirar ou de lavar a casa-de-banho. Nunca vivi neste mundo, sobretudo se tenho de fazer o que não me agrada. Desligo o botão e dirijo-me para o meu Shangri-La  
Não, não sei. Quando era pequena não sei onde a minha mãe guardava a roupa. Vestia-me, calçava-me, penteava-me, metia-me a lancheira na mão, dava-me ordens. Eu era o seu boneco e ela era a minha escrava, como do meu pai. Não fazíamos nada, esperávamos que ela o fizesse. Não sei como pôde aguentar sem ais os trabalhos que lhe demos. Eu não suportaria, porque a minha reduzida paz depende do espaço privado ao qual permaneço física e mentalmente só, lendo, escrevendo, vendo filmes, beijando a cadela, cuidando das plantas, amando a existência, e chega-me. Gostava muito de viajar, para me maravilhar com o que nunca senti e sei estar à nossa espera, basta querermos. Mas a minha mãe, como nos suportou. E que pesados fomos ambos, os dois gordos como focas!
Aborreço-me com ela porque reclama da minha comida, a sopa espessa ou rala demais. A carne inteira que devia estar desfiada, ou o contrário. A canja deveria ter arroz e não massa. Trouxe a laca x mas deveria ter trazido a y, e agora precisa do creme Benamor que está quase a acabar, só dá para três semanas. Aborreço-me porque é exigente, implacável, porque não dá valor ao meu sacrifício após um dia de trabalho. Ralho, tu não tens pena de mim, tu não tens consciência do que é a minha vida. Regresso a casa macerada de dor, sento-me no sofá e penso, sei, tenho a certeza que nós não tivemos pena dela. Ela foi a nossa escrava, e está tudo dito.

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