O tempo


Em pequena a Morena era muito assustada, não a cadela confiante e calma que depois se tornou. Tinha medo de tudo. Ia à rua, fazia xixi e casa. Exceto quando conheceu o grande doberman preto de orelhas espetadas que morava na calçada do Esfola-lhe-a-Pele, uma rua muito inclinada, de sentido único, na encosta do Castelo, em Alcácer do Sal. Vinha de lá a dar ao rabo, rápida, cansada e sorridente, e uma vizinha que estava muito à janela, tinha todas as doenças, e, entretanto, naturalmente, morreu, contou-me: senhora professora, ela tem ali um amigo: a bisarma do doberman preto de orelhas espetadas, com o sêxtuplo do seu tamanho, com quem brincava no meio da calçada. Eram dois garotos a jogar à agarrada. Os carros paravam com uma grande chiadeira, e se a rua era a pique. Eu punha o coração ao alto, como se faz com filhos rabinos.
Não sei se sentiram saudades um do outro quando se apartaram, mas a Morena continua a enrubescer quando avista um doberman preto. Hoje não vimos nenhum. Foi a forma como ela atravessou a estrada, risonha, moçoila, de rabo a abanar. Vi a cadelinha jovem dessa altura. E, ao vê-la, vi-me, e a todo este tempo que temos passado juntas, que me atravesssou como um fantasma. Não me doeu. Foi o embate da força dos dias que circulam a alta velocidade. Não me magoou. Atravessou-me. Isto para vós não significa nada. Mas deixei-me ficar parada na rua, abstrata. Quando entrámos no elevador, abracei-a, apertei-a, beijei-a, tudo de uma vez. Ela não gosta que a aperte, mas devo prestar culto à vida que nos calhou, ao tempo que nos foi dado, a nós.

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