Um pingo de vida



Nas traseiras da minha casa, e à sua sombra, a câmara plantou há anos um renque de árvores frondosas, que no Verão dão bagas pretas. Desconheço o seu nome, porque não percebo de árvores, embora as escute e compreenda.  Esta semana houve um dia em que choveu e ventou desalmadamente, e passando eu sob as árvores, vi cair do ninho, lá do alto, um pardalinho bebé. Um pingo de vida. Saltou duas vezes no chão, antes que a Morena o abocanhasse e fugisse, provocando também a minha corrida no seu encalce. Morena, larga o passarinho, coitadinho, larga, Morena, larga, não faças isso, anda já aqui, Morena, dá. E deu. Aliviou a boca e depositou nas minhas mãos o passarinho assustado, que aí protegi do frio e do molhado, beijando-o de leve na cabeça, sem saber o que fazer, mas com o sério intuito de o trazer para casa, de o salvar. A minha mãe haveria de me dizer como se salvava um pardalinho. Pela minha cabeça passaram rápidas ideias sobrepostas, imagens, recordações. Dava-lhe pão molhado e esmagado, arranjava-lhe uma caixinha, e fazia de mãe-pardal enquanto não crescesse o suficiente para voar. Senti-me preocupada com a súbita responsabilidade, e apressei-me em direção a casa, com o pardalinho inquieto, abrindo e fechando o bico no côncavo das duas mãos fechadas. Sentia o calor do seu corpinho e o coração a bater-lhe muito depressa. Quando entrei em casa pareceu acalmar. Ficou muito quieto. Olhei para o bebé: adormecera. Estava mole. As pálpebras haviam-se cerrado.
Embrulhei-o em papel de jornal e enterrei-o ontem.
Hoje, sob a mesma árvore, duas pombas debicavam uma bolacha Maria cheias de vontade de viver.

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