Da tristeza



Mas a menina traz consigo uma alegria inata que eu nunca tive, responde mister Simões, argumentando relativamente às propostas de vida que lhe apresento.
Tenho uma alegria inata? Vim mesmo equipada com um acessório tão raro e caro? Talvez tenha razão, admito. Gosto tanto de me rir. Uma boa gargalhada não se recusa. Uma piadinha a qualquer hora. Um sorriso. Interrogações, constatações que elaboro na minha mente nos segundos que precedem a sua afirmação. Mas não, acho que não. Não lhe respondo. Nem sei se sorrio. O Simões engana-se. Mais uma vez confunde aparência e essência. Sempre me servi da aparência para ir furando e do resto para resistir. Sempre fui uma pessoa triste, como os tais palhaços que fazem rir as almas, mas no final do espetáculo regressam lentos ao camarim e tiram a pintura das caras como um funcionário administrativo descalça os sapatos ao chegar a casa. Acabou a terça. Há-de vir a quarta. Para quê? Para nada.
Mister Simões, sem querer, faz-me recordar os palhaços da infância. 
Estou sentada na bancada do circo Mariano, entre o meu pai e a minha mãe. O palhaço rico, muito brilhante e inteligente, e o palhaço pobre, desajeitado, tonto, contracenam na arena. Eu rio. Todos riem. O meu pai irá explicar-me que os palhaços são pessoas como nós, também tristes, talvez mais tristes, os mais tristes de todos. Explica-me que quando voltam para a roulotte deixam de rir. Compreendo parcialmente. Compreendo que tiram a roupa do palco, a maquilhagem, que fazem comida, tomam banho e dormem. Mas que sejam tristes como penso que seja a tristeza, não compreendo. Ninguém lhes bate, não têm de ir à escola e resolver contas de dividir. Na minha mente imagino-os interpretando a tristeza exatamente como interpretam a alegria: como atores. Sou demasiado nova para compreender a adultícia e o seu permanente diferendo entre a expetativa e a realidade. Escapa-me que quase tudo está fora do meu controle, que mesmo trabalhando eu a meu favor, a ação de alguns sobre a vida excede o meu poder e capacidades. Não percebo bem as minhas limitações humanas. Tudo é possível, querendo, e se todos quisermos, se todos virem a verdade… Não sei que os outros não querem todos, que a verdade não é visível nem universal. Sou uma menina cujos dias são alegres ou tristes, e nem pensa nisso. Quando são alegres, vive-os inteiros, e, quando são tristes, procura entreter-se. A tristeza não é um estado permanente. Não há um sentido na tristeza. Não me parece que tenha vindo aqui para ser triste.
E agora volto a mister Simões. A menina é otimista, encontra solução para tudo. Se o céu desabafar sobre si, a menina desata a escavar um túnel para se salvar. Rio-me.
Não é isso, senhor Simões. Há uma tristeza que se vai calcificando com os anos e que não sai, mesmo quando sorrimos, quando procuramos saídas. É um sarro que não se pode tirar. Entra e fica. Há episódios que a acordam, e nesses dias fico triste. No resto do tempo, ignoro a tristeza instalada, salto por cima, porque tenho estes anos para cumprir e quero cumpri-los sem dores atiçadas. A tristeza é como as borras do vinho velho, lá no fundo, quietas, não chocalhando a garrafa. E o senhor é igual, porque somos todos iguais.

Mensagens populares