Escrever

As mesmas pessoas que me viam passear com a Micas e a Morena, perguntam-me agora pela primeira, e eu respondo, morreu, estava velhinha. E os vizinhos encolhem os ombros, sorriem à mulher sozinha que passeia os cães e lhes sorri. Estava velhinha, repetem. Sim, estava velhinha, confirmo. Eles andam. Eu ando.
Sem fechar os olhos revejo a Micas, coxeando ao meu lado, feliz, sacudindo a cauda. Éramos um trio de fêmeas que se entendiam e dependiam dos mútuos afetos. 
O ano passado, por esta altura, tinha ela deixado de andar e eu preparava-me para lhe mandar fazer uma cadeirinha de rodas, e acreditava que duraria muitos anos nela. Adaptar-nos-íamos à nova situação, como sempre, e a vida continuaria. Depois morreu, e não fui eu que a enterrei. Passo no sítio onde ela está, de vez em quando. Não sei porquê. É apenas um cadáver animal a apodrecer. Passo, porque ela ainda está dentro de mim e quero ver o sítio onde o que resta ficou? Não sei, juro. Há comportamentos qu nunca conseguirei explicar. São irracionais. São meus. Talvez um dia perceba. É mesmo fundamental percebermos tudo? Demoro muito tempo a fazer o luto dos meus amores. Vou chorando e escrevendo, até parar de chorar. Não paro de escrever porque não se tira o pão da boca de uma pessoa.

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