Uma barragem contra a mudança


  Imagem - Chertkova Svetlana


Regressei do trabalho a pé e subi até casa por uma rua antiga onde não se passa de carro.

Tudo muda, mas, graças a Deus, nesta rua, nada mudou. São as mesmas tascas-mercearia, as mesmas mulheres à janela, os mesmos edifícios, feios e sujos, os mesmo pátios populares. Subo com o passo forte com que a subia há mais de 20 anos, mais umas gotas de suor na nuca, e a minha alma ilumina-se durante a subida. Há um sossego na permanência, na imutabilidade. Posso defender mil vezes as vantagens da mudança, enumerá-las, mas a rua que não mudou prova-me que o passado ainda existe, bem vivo, todo inteiro. Ei-lo ali exposto ao meu olhar mental.

Estou agora a ver o sítio exato onde reclamei com ele que já tínhamos pouco tempo para fazer amor, porque se entretera a falar com os outros, porque não queria saber, porque nada lhe interessava, porque agia como uma criança. Dali a nada os meus pais estariam de volta, e quando voltaríamos nós a ter tempo para fazer amor, por acaso saberia responder-me? Não sabia. Encolhia os ombros. Não sabia nada. Não pensava, naturalmente, e eu tinha vontade de o esganar. E continuava a subir, apesar de tudo desejosa de o abraçar, de sentir o seu corpo que era um vício tão vermelho. Depois amargo. Esse momento está ali. Ficou gravado nas paredes exteriores do café Nita, como as figuras de Pompeia, no sítio exato onde a rua começa a estreitar em direção ao prédio do sapateiro cujo cão me mordia a curva do tornozelo, quando descia às sete da manhã, apressada para apanhar o autocarro da ponte ou o cacilheiro. Passo e ouço-nos, vejo-nos, e também o cão do sapateiro, falsos ambos.

A casa com o painel de azulejos, onde se lê “contabilistas”, está para venda. Ao lado, a outra casa, decrépita, onde já só moravam velhos, encontra-se apenas abandonada.  De resto, tudo igual. Que maravilha, que sossego de existência a rua velha, feia, onde o passado permanece guardado para eu ter a certeza que aconteceu, e reviver de uma forma estranhamente física os momentos em que ficávamos sós antes dos meus pais chegarem, os dentes rápidos do cão na curva do meu pé e o suor na nuca.
Ainda existe tudo, afinal há coisas que não mudam; há mesmo coisas que permanecem dentro dos limites das velhas ruas feias onde só eu passo, porque só eu sei onde ficam, que existem. São atalhos que escaparam porque não interessavam. São cofres desengonçados aos quais ninguém deu importância. Talvez os outros tenham também as suas velhas ruas feias. Se assim for, guardem-nas bem.

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