Comer a terra aspergida de sangue

 Joseph Koudelka


O mundo das crianças mudou muito desde que atravessámos essa idade!
As creches da cidade passaram a ter pequenas hortas, uma capoeira e uma coelheira para ensinar aos meninos que as coxas de frango não dão flor, as batatas não nascem nas laranjeiras e as peras não saem do chão como cogumelos. Uma vez por semana, vão com as educadoras para o quintalinho, onde descobrem que o chão tem grãos chamados terra, e lhe podem mexer com as mãos para enterrar sementes parecidas com as que os papás puseram nas mamãs para eles nascerem.
As escolinhas resgatam os meninos às famílias modernas, que os enclausuram em higiene e digitalização, não os autorizando a fazer festas aos cães da vizinhança, por causa das doenças, dos pelos, dos ataques mortais, e permite-lhes, por programa, tocar as orelhas de um coelho ou tirar do ninho os ovos das galinhas. Deus abençoe as escolas pelo pouco que conseguem fazer.
A minha infância foi um bocado diferente. A minha mãe andava de joelhos no quintal, dispondo nabiças, depois arrancava quatro cenouras e dois pés de cebola, escolhia uma galinha na capoeira, enfiava-a debaixo do braço, cortava-lhe o pescoço em dois segundos, enquanto me gritava, Isabela traz-me um alguidar, depressa, já esguichando sangue em todas as direções da terra. Escaldava uma panela de água, depenava-a, abria-a, preparava-a para o guisado, e punha-ma no prato, com batatas, sem que tivesse tempo para lhe perguntar "como é que conseguiste matá-la se a tratavas com tanto cuidado? Não gostavas dela? Que mal  te fez?" 
Tal como as alfaces e os tomates nasciam e cresciam para ser comidos, também os animais do quintal tinham como único fim a faca e o tacho. Penso que metade do meu tempo livre de criança tenha sido passado a meditar sobre o incompreensível holocausto dos animais domésticos. Darem-me um coelho, deixarem-me chamar-lhe Branquinho, depois matarem-no à cacetada para o assarem no forno com batatas, obrigando-me a comê-lo, era como mandarem-me comer a carne de um irmão, se o tivesse. 
Antigamente, sobrevivendo-se à infância sobrevivia-se a tudo. Bofetada à solta, castigos, dureza de princípios, violência e estoicismo. Alguém se dava ao trabalho de nos poupar uma cena ?! A hipocrisia guardava-se toda para o sexo, atividade que não existia. De onde é que vínhamos?! Da barriga da mãe! A conversa acabava. Penso que só a miudagem que dormisse com os pais no mesmo quarto pudesse perceber a verdade.
A vida das crianças, nos dias de hoje, na sociedade ocidental, nascendo-se nas classes certas, é quase blindada; amortecida, até. Talvez os miúdos se tenham tornado, de forma geral, mais calmos. São, sem dúvida, mais informados, e substituíram valores morais, éticos, cívicos pelo que no meu tempo era obediência cega. Não defendo que a cultura contemporânea tenha produzido piores indivíduos, pelo contrário. Mas penso que houve uma perda de contacto com a nudez dos atos da vida e uma diminuição da aprendizagem da sobrevivência, e ambas continuam necessárias. Isso preocupa-me, porque, menos subterraneamente do que se pensa, a vida continua tão dura e violenta como no meu tempo, sendo que atravessamos dias de convulsão e afundamento de todas as vigências, o que torna primordial a resistência para sobreviver.
Resistência. Sobrevivência. São palavras do tempo das cavernas, e temo que miúdos educados sem autorização para comer terra aspergida de sangue, e rebolar-se nela, não consigam desenvencilhar-se fora do cimento. É isso.

Mensagens populares