Uma viagem para conversar com o senhor Coetzee





Estive a ler sobre Coetzee e a África do Sul.


O escritor pouco me interessa, tirando a parte em que escreve os livros, o que eu percebi foi o homem, quando li Desgraça pela primeira vez, há uns sete anos, e depois a obra toda de seguida.
Ali estava uma pessoa que podia compreender o que era ser puro africano branco, destituído de África. Um homem mais desterrado do que eu. Filho de um holandês e de uma polaca, ou vice-versa, nascido boer numa África do Sul cuja realidade não aceitou e sempre o transcendeu, antes e depois da independência. 
Eis um homem com o qual eu poderia dialogar francamente sobre brancos e negros, racismo e violência, pertença, exclusão, identidade e vazio.

Gostaria de tentar falar com Coetzee sobre o facto de pensar não ser o mesmo nascer na África do Sul ou em Moçambique, países vizinhos. Que coisa foi essa de os brancos, os pretos, e o racismo não serem exatamente iguais nos dois países. Não conheço a história desta zona de África para poder explicar os motivos. Sirvo-me sempre da memória e da intuição, e o que ela guarda lembra-me que na África do Sul até os brancos portugueses piavam fininho. A paisagem do caminho entre Ressano Garcia e Joanesburgo parecia a de Música no Coração e, na cidade, os pretos andavam bem vestidinhos e calçados, à branco, como se aquilo fosse um território de cerimónia. Por cima da carapinha, usavam gorros de malha, os homens, e boinas de lã, as mulheres. Não me lembro dos bairros dos pretos. Só dos dos brancos, com belas vivendas centradas em espaçosos terrenos relvados.
Eu pensava que a África do Sul era um país civilizado, e que lá tinha de me portar melhor. Íamos para um hotel caro. Fazíamos compras. Passeávamos nos jardins e feiras. Tirávamos fotografias.
Eu sabia que era tudo separado, mas pensava, na minha mentalidade colonial, que os espaços dos pretos não me eram interditos. Erro.

Gostava de dialogar sobre o passado sem grandes limitações. O que sentiu? Como fez para? Porque não decidiu antes?
Coetzee diz que não se importar que o mar engula a África do Sul, mas eu não quero que o mesmo aconteça a Moçambique. Porquê? Porque não vivi por lá o pós-independência? Porque não voltei ainda?
Coetzee adotou a nacionalidade australiana, mas eu, mesmo que fosse viver para a Serra Leoa, não conseguiria deixar de ser portuguesa. Sou uma moçambicana que quer ser portuguesa, que é portuguesa. Sr. Coetzee, acha que eu tenho mais raízes do que o senhor?


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