Mundo-cão



Pouco tempo antes ou depois do meu nascimento, a minha mãe forrou uma alcofa de palha com tecido rosa, rendas e laços, e nela passou a transportar-me para todo o lado. Não tenho foto alguma de criança onde apareça uma cama de bebé. Provavelmente existiria, mas apenas me retrataram na alcofa rosa e na cama dos meus pais, por cima da colcha de damasco. Tenho de imaginar camas de época, e, mesmo imaginando-as, não me consigo ver nelas.
Isto pode parecer irrelevante, mas facilmente provo o contrário. Durante os anos terríveis em que desejei parir, imaginava o meu bebé a dormir no chão, ao meu lado, muito confortável no interior de uma alcofa bem melhor que a minha. Posso ir mais longe: comprar-lhe-ia uma caminha de espuma igual às dos cães, que forraria com tecido de bebé, e depois encaixaria num segundo suporte, igualmente semelhante às camas para cão, mas de verga. Em traços largos, o meu filho, tivesse ele vingado, teria dormido em caminhas de cão por tempo indefinido. Nunca me ocorreu que pudesse ter uma cama de bebé antes de... não faço ideia, nunca o imaginei numa cama. Era ali. No chão. Aos pés da mãe. 
Vem isto a propósito de uma realidade que remete para a Morena, e de um comentário de um amigo.
Primeiro, a cama da Morena é de espuma e tecido estampado com ursinhos azuis e patinhos amarelos, acompanhados da expressão "baby love". Quando me deito de bruços, na horizontal, a pensar, acontece fixar o olhar nessa camita de "bebé". Deve ser confortável. Deve ser bem mais confortável que a alcofa de palha, forrada à mão pela minha mãe, na qual me transportaram até não sei quando. Tomaria eu ter tido como alcofa a cama da Morena.
Segundo, um amigo concluiu que sou mais animal que gente, e anuí. Não é verdade, sabemos. Sou muito gente. Mas nas minhas fantasias imagino-me uma loba, entre os outros. Ultimamente, incluí a Morena na fantasia da matilha, o que me trouxe desassossego. Até ao momento em que fui loba sozinha senti-me livre, dona absoluta da minha necessidade e saciedade. Ao transportar a Morena para a matilha-fantasia, a sua proteção tornou-se uma prioridade. Já não posso dormir sossegada na matilha, unida aos outros corpos pelo torpor do sono; há que proteger a Morena, que não é selvagem e se encontra em desvantagem. Tenho de estar alerta pela Morena. Podem atacá-la.
O meu pai dizia que o mundo era cão. O que o meu pai queria dizer é que os lobos que não se transformaram em cão fiel não terão escrupulos em atacá-lo, dilacerá-lo sem culpa, sem remorsos, sem pensamento, porque o mundo é a luta pelo pão nosso de cada dia, ganho como a natureza o mandar. Mundo-cão quer dizer mundo-lobo. Eu, que nasci gente, fantasio ser loba e desejo ser cão, transformei-me na luta entre essas existências.

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