A carne e o sangue

Da esquerda para a direita, mãe, madrinha comigo ao colo e padrinho. Zambi, Lourenço Marques, 1963

Quando eu era pequena, a minha mãe dizia-me, "tu és esquerda". Às vezes também me calhava, "és judia e bem judia", e outros mimos similares.
Nunca quis ter outra mãe. Gostava desta que me acossava, me tratava duramente, aos repelões, como um bicho que não passa de um bicho e não é como a gente.
A minha mãe desejou uma outra filha, que tenho pena de não ter sido, para seu contentamento - uma que não subisse às árvores, não se mexesse, não falasse, não risse, não questionasse. Preferia tê-la feito feliz. Quis uma princesa, imaculada, capaz de se transformar numa criada de servir, se fosse preciso, e saí-lhe uma pessoa ansiando ser livre, inconformada sem lógica que pudesse compreender. Foi um grande desencontro para a sua alma. 
Meio século depois, aqui estamos, presas ambas com cadeias de carne e sangue, empedernidas, lutando como dois animais fartos de se ferir, conhecendo-se totalmente, mas não podendo parar de se atacar, de frente ou por armadilha. Temos a luta entranhada nos genes. Já não queremos, mas temos de fazer isto até ao fim. Não sabemos viver de outra forma. 
Eu não quero outra mãe. Não sei se ela ainda sonha uma outra filha. Talvez. Eu poderia ser bem melhor. Ela, sei lá eu. Temos o que somos e o que fizemos de nós e uma da outra. Entretanto, ataca, defende. Ataca outra vez. Defende de novo. Agora por outro flanco. Recomeçando.

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