Com os mortos não se brinca

 Disparate de Miedo, Goya

O feriado de Todos os Santos acabou oficialmente a semana passada. Acabou a romaria aos cemitérios no dia um de novembro, ritual que cumpria desde que me lembro de existir. No próximo ano estaremos a trabalhar à hora de lavar as jarras de flores e as lápides no cemitério. O fim do mundo atingiu proporções em que me sinto roubada de tudo, até da cultura em que me formei.
Se há dia santo que sempre respeitei, foi este. Significa, para mim, muito  mais do que o Natal - não sinto necessidade de prestar culto ao nascimento de Jesus num dia fixo. Toda sabemos que o nascimento do Menino corresponde a data difícil de determinar, sendo o dia 25 de Dezembro totalmente artificial. Contudo, o dia de Todos os Santos é, na tradição religiosa católica e mágica, de elevada carga mística. É o dia dos finados, dos mortos, aquele em que andam à solta, em que nos vêm visitar, e nos cabe dizer-lhes que ainda estamos unidos. A minha mãe sempre me desaconselhou andar nas ruas à noite, nesta época, porque se encontram pejadas de almas que não nos convém cruzar. Respeitei-o sempre, embora tivesse tentado ser desobediente à minha mãe em tudo o resto. É que com os mortos não se brinca.
Brincadeiras à parte, o culto dos finados sempre me pareceu, intuitivamente, de importância identitária crucial. Uma família, uma tribo, uma nação, presta culto aos seus mortos e respeita-os. Este culto é, em simultâneo, um ritual que consagra a vida. O que realizamos, ao rezar e oferecer flores aos nossos mortos, é dizer-lhes, "partiste, mas nós continuamos cá, e por isso viemos dizer-te que nos fazes falta, que estás na nossa memória, e que assim será enquanto continuarmos deste lado."
Roubar este feriado aos portugueses é despojá-los, portanto, de um momento de encontro com a sua identidade individual e comunitária. É amputá-los da sua cultura. Que tempos tão tristes, tão mais negros que a própria morte.

Algumas vozes virão lembrar-me que o feriado não acabou, apenas se encontra suspenso por cinco anos. A esses. gostaria de remeter para o Público da passada sexta-feira, dia 2 de novembro. Em caixa integrada no artigo de Ana Cristina Pereira sobre a suspensão do feriado de Todos os Santos, o deputado Ribeiro de Castro, do CDS-PP, alerta para o facto de o vocábulo suspensão ser um "logro". Segundo o mesmo, "o que houve foi uma eliminação de quatro feriados". Ou seja, a lei 23/2012, de 25 de junho, artigo 10º, elimina-os sem contemplar qualquer período de vigência. Disto não fez eco o governo, como se esperaria, e muito menos a Igreja. Que o governo iluda a realidade, é esperável, mas que a Igreja colabore na apresentação de feriados a suspender ou eliminar, e que cale a verdade sobre o que está em causa, é abjeto. A Igreja de hoje é exatamente o que sempre foi: é a da Inquisição e a do cardeal Cerejeira. Os assentos continuam ocupados pelos sucessores diretos, bebendo todos na mesma fonte de conluio e de favorecimento mútuo com o poder. Tudo isto me faz asco, e muito mais sendo eu católica.
Há cerca de um mês assisti a uma missa numa igreja da província cujo sermão versava o tema família, e pelo seu teor poderia ter sido pronunciado por qualquer prior nos anos 50. Nada mudou, portanto.

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