O monstro da fome



Tenho fome há meio século. Nasce no estômago, ao centro de mim. A fome aperta-o, tiraniza-o como se os órgãos à sua volta o maltratassem, pontapeando-o com saltos-agulha. 
A fome dói, não dá sossego, não deixa que me distraia com nada. Domina-me. Quanto sinto a fome do estômago, penso em matá-la antes que passe para a cabeça e me faça chorar. A minha fome é voraz. Engulo os alimentos sem os mastigar, muito depressa, porque o importante é saciar o estômago. Enchê-lo. Tapar o enorme buraco da fome, uma ravina sem fundo.
Estou cansada da fome, do seu domínio sobre o meu estômago. Preferia sentir fome nos pulmões para saciá-los com grandes golfadas de ar. Ou no coração, para correr e acelerar a pulsação. Calhou-me a fome no estômago, e eu recuso as tiranias.
É urgente dominar o monstro de múltiplas cabeças apontado ao meu estômago, fixado nele. Agora tenho direito a ser velha, logo, a pensar devagar, sem distrações, e começo a entender. O monstro é um relógio-despertador que toca de digestão em digestão para me dizer, está em falta, está em falta, está falta, estridentemente em falta. O monstro da fome busca uma saciedade que o meu estômago repleto só pode satisfazer momentaneamente. O monstro da fome quer que eu faça o que está certo, que olhe por mim, que não me traia. Que me alimente do que em mim nasceu. Cogumelos no escuro, no interior húmido do meu corpo, dos esporos que a criação semeou. Se tivesse sido o que vim ser, viveria em paz com o monstro e dormiria com ele como com um cão. O monstro da fome é um grande amigo. Comprou na feira da Ladra um espigão enferrujado de matar porcos e vai-o espetando de leve no meu estômago, para que não me esqueça, não me esqueça, não me esqueça.  Acorda, rapariga. 

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