Requiem

Caspar David Friederich, Monk by the Sea



Fiz o costume, enquanto posso. Sentei-me no café a beber um garoto de máquina a escaldar e a ler o jornal. Estava a dar o GP EUA na Sport TV. Lembrei-me de ti, ou melhor, imaginei-te sentado ao meu lado. Perguntar-te-ia se GP EUA significava mesmo Grande Prémio dos Estados Unidos, depois em que circuito decorria. Reparei que em primeiro lugar ia um tal Ham, e, em segundo, um But. Saberias imediatamente identificar os apelidos abreviados, explicar-me-ias se tinham hipóteses de se manter à frente, ou se haveria um corredor mais atrasado à espera de uma oportunidade para os ultrapassar. Saberias as posições de cada um na geral do campeonato de fórmula 1. Decorei as abreviaturas dos nomes para vir aqui dizer-te, mas é uma estupidez, porque para ti já não existe tempo nem espaço, e é mais provável que te tenhas sentado na bancada, vendo-os fazer as voltas, ou mesmo que te sentes à beira da pista ou que estejas no posto onde vão mudar os pneus, apressando os mecânicos. A fórmula 1 é um assunto muito sério.
Como escreveu o Peixoto, morreste-me, cabrão. E morreste-me à grande, mesmo a sério, sem apelo, sem despedida, nada, e não deixo de pensar que te tinha entranhado nos costumes. Ao longo destas semanas não paro de te ver caminhar na minha direção, já sorrindo, com a gabardina do costume, os jornais na mão. E lamento ter sido tão crítica, teimosa, exigente, inflexível. Lamento ter exigido de ti o que os pais do meu tempo exigiam a um filho, ou seja, o que me exigiram, e que aprendi. Que tomasses tino. Que arrumasses a vida, ao menos com um emprego certo que te permitisse sobreviver. A tua alma devia  já saber que não valia a pena dar-se ao trabalho, e ias passando à frente. Não te interessava a escravatura dos outros. Sabias que não a querias para ti, que não viverias dessa forma. Sempre tiveste razão, e eu sempre soube que a tinhas, mas não havia alternativa a apresentar-te. Neste mundo, ou te deixavas escravizar, consentindo, ou te afastavas dele. Não há outra via. Afastaste-te dele no fim, com a coragem a que, por inveja, chamei inconsciência; era mais uma das que te passavam pela cabeça para depois regressares quando já não desse. Foste para morrer sozinho e me deixares, mais uma vez, com essa corda apertada na garganta. A morte não me interessa, pudesse eu atravessá-la para te abraçar, rirmos, e voltar até chegar o meu dia. E para te pedir perdão. Nunca falaste a linguagem das pessoas e nem sempre tive força para te socorrer. Houve alturas em que fui egoísta e não estive para te aturar as travessias e as mazelas. "Filho da mãe, fá-las e eu é que tenho de as aturar?!" Fui vil.
Tive saudades tuas no café e tenho-as sentido desde que te foste embora. Quando perdemos as pessoas, passam a fazer-nos uma falta estúpida. Eu sabia que estávamos ligados, mas não que ias fazer-me esta falta absurda numa tarde de chuva com fórmula 1. Já não posso apresentar-te como o meu amigo da juventude, o único, como eu, que não se vendeu, não se arrumou, não se acomodou. E ríamos, porque era verdade. Fiquei muito mais sozinha deste lado. Quero lá saber se estás para aí a sorrir, a dizer, "não te chateies, linda". O que eu queria era abraçar-te e sentir o horrível cheiro a tabaco da tua gabardina.

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