Travessa do Cais, nº5, Caldas da Rainha


 Fogareiro a petróleo


Quando a minha avó abriu a porta, encarei um estreito corredor de cimento, a céu aberto. No chão, um enorme ralo. A porta abriu para a direita e, quando a fechou, reparei que escondia um tanque de lavar roupa e enormes bacias. 
Logo à entrada, mesmo antes de abrir a porta, escutava-se o cacarejar de galinhas e o arrulhar de pombos e rolas. Aberta a porta, os dejetos das aves apareciam difusamente, tornando-se um tapete de merda cada vez mais espesso ao longo dos 12 metros do corredor, desembocando num pátio interior, não maior que um quarto de dimensão média. De frente para o corredor, a capoeira, de porta sempre aberta. À direita, um complicado arranha-céus de casotas de pombos, construído com caixas de madeira. As  aves assomavam à entrada e arrulhavam fortemente, com medo de mim. Os borrachinhos, dentro, ouviam-se chilrear. Tudo se aguentava colado com detritos dos animais, pelo que a madeira dos caixotes apenas se adivinhava. No chão, os sapatos afundavam-se na alcatifa de poias acumuladas ao longo do tempo. 
À direita, transversal à parede dos pombos e à da capoeira, a porta de casa, finalmente. Ela abriu-a. A merda propagava-se pelo chão, menos espessa. Tinha havido ali um esforço de limpeza e arrumação. As galinhas entraram antes de mim, enquanto a minha avó ia falando com elas, meninas, meninas, já aqui estou, já cheguei. Era a cozinha. Frente à porta, encostada à parede, a mesa de madeira sólida, escura, polida pelo tempo, com duas enormes gavetas onde guardava talheres e pão. À direita, um poial  no qual se encontrava o fogão a petróleo e um velho armário alto, envidraçado, no qual guardava a louça e os tachos. À esquerda, caixas de papelão com a nossa tralha, ainda fechadas, que o meu pai lhe enviara por correio, perdida a esperança de comprar espaço para caixotes num navio. A certa altura, a sair de Lourenço Marques, nem navios nem espaço, pelo que restava a solução encomenda postal para as peças mais pequenas. Sobre algumas dessas caixas havia outras, de madeira. Eram ninho de galinhas entrevadas. A minha avó tinha pena delas, nascidas com defeitos congénitos, e não as vendia. Tratava-as à parte, cuidando-as com desvelo de mãe, mudando-lhes diariamente a palha, dando-lhes de comer à mão, limpando-as como se limpam os bebés. E as galinhas correspondiam a esse amor fazendo-se entender. Comunicavam entre si numa linguagem só delas que me enternecia. Pela cozinha voavam livremente pombos, rolas e pardais, empoleirados no alto das caixas e do armário.
À esquerda da cozinha, uma porta dava acesso ao quarto da minha avó. Ao abri-la, saiu de dentro  a Chinita, uma franga branquinha. Havia poias pelo chão, mas menos. Sobretudo, os seus restos mal desencascados. Os pombos voavam pelo quarto, como por qualquer outro sítio. Não havia sítios proibidos aos animais. À esquerda, a cama de solteiro da minha avó, em ferro, encostada à parede, coberta por uma colcha de chita com estampado colorido, a mesa de cabeceira, e, à direita, uma arca e um armário de gavetas, tudo de madeira, pobre, sem valor, coberto pela patine do tempo. O teto forrado a platex, abria-se no local onde existia uma telha de vidro, único ponto de luz natural nessa divisão. A minha avó orgulhava-se do forro a platex. Era uma casa vedada. Ali não entrava uma gota de chuva, como noutras, dizia. Bom dinheiro lhe havia custado o forro, acrescentava, mas para alguma coisa lhe servia ter-lhe o filho fugido para as Áfricas. 
Uma abertura rasgada na parede dava aí acesso a outro quarto de dormir, sem porta. Tinha sido o quarto do meu pai, e seria o meu, a partir desse momento. No meu quarto, também encostada à parede, à esquerda, uma cama de casal, em ferro pintado a branco, muito alta, e mais alta, ainda, porque o colchão de palha acabara de ser mexido para a minha chegada. O resto era  um atulhado de de sacos de cereais para a criação e de caixas enviadas pelo meu pai. Havia um espelho de 20 por 15 na parede da única janela, à direita, dando para o interior da capoeira. Nele, passei a pentear-me e olhar-me, tentando perceber se era bonita, questionando-me sobre o motivo porque os meus lábios não tinham a forma de um coração perfeito, espremendo borbulhas, furando-as com o bico da tesoura. Nesse quarto doeu-me o peito de falta, fantasiei que um rapaz da escola me beijava, e eu a ele, e que o Art Sullivan me beijava, e eu a ele, e o que fosse preciso para adormecer nos lençóis gelados, muito direita para o sangue circular melhor, como o meu pai me tinha ensinado. Muito direita, como na formatura da tropa, e o sangue havia de chegar rapidamente a todos os lugares do corpo que o corpo teria de aquecer.
Não havia casa de banho. As lavagens e as necessidades fisiológicas eram feitas ao lado do tanque, junto ao ralo, na entrada. Não havia água quente, a menos que se aquecesse numa panela e se carregasse à mão até uma enorme bacia de zinco junto ao ralo. Para aquecer os pés, a minha avó tinha, como grande luxo, um pequeno calorífero atravessado por dois tubos brancos horizontais. Ligado à eletricidade, os tubos encandesciam e deitavam calor. Havia ainda uma eficaz botija de água quente, em metal, que passou para a minha cama.
Isto acontecia na Travessa do Cais, nº 5, às Caldas da Rainha, e nessas noites de 75 e 76  consolava-me ouvindo os comboios passar. Iam para norte ou para sul, não ficavam ali. Eu também estava de passagem, não sabendo para onde nem quando. Uma coisa era certa, o futuro estendia-se à minha frente e eu voltaria a ter uma casa digna. Não que a da minha avó fosse indigna, porque a pobreza não era uma falta moral. Mas eu conhecia outra vida. Havia estacionado num tempo difícil, mas à minha frente estendia-se todo o futuro, para o resto da minha vida todo o futuro.

 Botijas para a água quente

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