O suicida



Fui hoje encontrar-me com o senhor Xavier Zabriskie de quem recebi um enigmático email a semana passada, dizendo-me, "Cara Josefa, estive na sua terra, finalmente. Tenho apreço por si e leio tudo o que vai escrevendo. Gostava de lhe falar sobre algumas das ideias que defende publicamente, porque creio que corre certo perigo. Cordialmente." Seguiam-se assinatura e contactos. 
Recebo correspondência de muita gente. Uns, loucos varridos, outros, ainda não. Leio tudo por igual, e respondo, se vale a pena. Não discrimino. Considero-me, portanto, profissional em blind dates, uma vez que passo a vida a tomar cafés com gente que não conheço de lado algum. Normalmente, boas experiências. 
Não hesitei em aceder à solicitação do senhor Zabriskie, cujo nome me causava perplexidade. O que teria o senhor a dizer-me era assunto para depois.
Encontrámo-nos no café O Manjar, na Baixa, onde o homem era conhecido dos funcionários por "o senhor doutor". Não fiz perguntas. Nunca faço. A verdade é que não quero saber. Para mim é tudo igual. Oh, é mesmo, não se duvide.
Quando cheguei, levantou-se e fez-me sinal. Conhecia-me das redes sociais e da imprensa, desde a última vez que sugeri uma ação de desobediência civil, nomeadamente a ocupação do hemiciclo do parlamento, o que não chegou a acontecer, porque em Portugal não há gente, mas corpos desabitados, e agravadamente sem sombra, sem rasto.
O senhor Xavier era um homem alto, moreno, bem arranjado. Não parecia maluco. Apertou-me a mão, apresentou-se e iniciou a conversa.
- Há uma coisa que me espanta em si, Josefa. Uma dúvida. Você é funcionária pública, não sente medo em expor as suas opiniões como tem vindo a fazer? Não receia ver-se sujeita a um processo disciplinar?
- Refere as minhas tomadas de posição políticas? 
- Exato.
- Sei o que faço. É consciente. Perdi o medo lá atrás. Foi-se. Puf. Tenho direito a ter opinião e a exprimi-la.
- Admiro-me, porque você não tem as costas quentes. Não tem papá, não tem mamã...
- Não, nada. Só eu. Mas não ter papá nem mamã faz de nós os melhores kamikazes, sabe?!. Não estamos presos a nada. A ninguém. Libertaram-nos. A mim libertaram-me cedo, eu é que me prendi muitos anos. Pensei que tinha de tomar conta de mim, tinha um futuro a proteger, ilusões, esperanças. Agora não. Repare, vivi dois terços da minha vida, quero lá saber. O senhor não é mais novo. Não sente o mesmo?! 
- É uma questão retórica?!
- Não. Sim. Enfim, não interessa. O sistema que tome sobre mim as decisões que lhe apetecer. Veremos, depois de tomadas, quem joga melhor o jogo.
- Você não tem qualquer hipótese de se sair bem.
- Por que não?
- Não tem poder.
- Julga o senhor.
- Sejamos honestos, cara Josefa, que hipóteses tem de se safar se lhe for instaurado um processo disciplinar com base  no facto de não actuar no sentido de criar confiança na acção do Estado? É uma agitadora. Apela a ações violentas...
- Nunca apelei.
- Sugere-as.
- Nunca defini um alvo.
- As pessoas percebem.
- Catch me, if you can.
Encostei-me ao espaldar da cadeira, dei uma passa no cigarro, respirei fundo.
- E mesmo que me apanhassem, caro senhor? O que se seguiria?  Aposentação compulsiva?  Já viu o favor que me faziam?!
O homem não respondeu. Outra passa no cigarro.
- Era. Acredite. Dependo do salário que me pagam, tem toda a razão, e a miséria de reforma que auferiria não chegaria para me manter com o nível de vida que tenho. Mas, pense nisto, eu, sozinha, pelo meu próprio pé, nunca terei coragem para os mandar à merda. Nunca terei coragem para chegar à repartição e gritar-lhes, "não sou escrava, grandes cabrões. Nem vossa, nem das vossas iniquidades encomendadas, nem de ninguém. Apenas da minha vontade." Nunca o farei porque tenho faturas a caírem todos os meses e não me libertei disso. Imagine que me apanhavam. Libertavam-me, amigo!
Sorri e baixei a cabeça, pensativa, gozando a ideia.
- Libertavam-me, já viu?! Era à força, e claro que depois ficava tesa e andava a chular quem aparecesse. O senhor. Outros. Ouça, eu também sustentei muita gente, enquanto pude. Há-de haver por aí quem me sustente e me dê casa. E se não houver, rouba-se. Vamos com a maré. Sempre me adaptei a novas circunstâncias. As mudanças à força nem sempre são más. Já viu o tempo que tinha para me dedicar ao ensaio político ou mesmo à militância num partido que defenda o mesmo que eu?!
- Josefa, você é um bocado louca.
- Não sou. Tornei-me prática. Tenho um modo de vida horrível da qual não me consigo libertar. Levanto-me todos os dias para sofrer uma escravidão sem fim, que não serve senão para prolongar a mesma escravidão. Trabalho para viver tesa. O que chama a isto? Não é escravidão?!
- Não sei, acho que podia desistir do carro, por exemplo.
- Não posso. Quer dizer, por agora não posso. Faz-me muito falta.
Estivemos ambos um bocado em silêncio enquanto eu fumava e ele bebia café.
- Ainda bem que me pediu este encontro, amigo. Confesso: nunca tinha revelado o que acabei por lhe dizer. Tinha-o pensado para mim com alívio, apenas. Uma coisa meio inconsciente, que me passa pela cabeça enquanto espero no semáforo, e no momento seguinte já não me lembro, porque acendeu o verde. Passa. Mas é isto mesmo.
- Você lembra-me um potencial suicida que não tem coragem de se matar.
- Sim, mas dos que se colocam num ponto perigosíssimo da estrada, esperando que um carro se despiste e o atinja.
Rimo-nos.
- Isso.
- Ora bem.
Levantei-me. Estava na hora. Despedimo-nos. Esqueci-me de lhe perguntar a origem do apelido.

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