Maldadezinha humana

Há turmas ostensivas, com as quais não conseguimos estabelecer uma ponte que transcenda a passagem de conhecimento científico. Tenho pena que aconteça, porque a existência de um certo grau de empatia entre professores e alunos facilita o processo de aprendizagem. Tornamo-nos muito mais disponíveis uns para os outros. É raro não conseguir fazê-lo. Ao longa da minha carreira de mais de 26 anos, só me lembro de duas turmas com as quais aconteceu não haver empatia.
O episódio que passo a relatar é recente e perturbou-me.
Pretendia explicar aos alunos em que consistia a caracterização indireta, pelo que decidi tornar-me personagem, em lugar de escolher qualquer outra figura. Expliquei que se num texto me declarasse uma pessoa nervosa ou com picos de humor, ou alguém por mim, estaria a caracterizar-me diretamente. Uma aluna nas carteiras de trás exclamou que a isso se chamava bipolaridade. Esclareci que no meu caso, não. A bipolaridade é uma perturbação psiquiátrica distinta da mera alteração de estado de espírito. Continuei.
"Se quiserem escrever um texto sobre mim com base no meu comportamento, naquilo que eu não digo, mas que observam e concluem, estarão a caracterizar-me indiretamente. Por exemplo, o que é que o Tiago escreveria sobre mim?" 
O Tiago afirmou não querer responder. Ok. "Então, e o Dionísio?!" Também preferia manter-se calado. Estranho, mas passo à terceira tentativa. "E a Jessica, diga lá, parece estar aí cheia de vontade de falar". "Sobre a stora não quero dizer nada, mas posso falar sobre a de Biologia?", pergunta com certa euforia, preparada para discursar.
"Não, não pode falar sobre os outros professores", apressei-me a responder, assim que percebi que ia seguir-se uma lista de acusações à personalidade da professora de Biologia. E tornou-se claro que os anteriores não tinham arriscado caracterizar-me indiretamente, não por pudor, mas porque o que tinham a dizer era desagradável e não pretendiam arranjar problemas.
Acabei com o momento, concluindo com um "ainda bem que todos compreenderam", ficando pensativa e triste. Eles não gostam de mim. Não pensam bem de mim. Ter de me confrontar ali com o espírito ostensivo do grupo, a solidariedade muda que estabeleciam contra mim, não foi um osso fácil de roer, até porque era preciso continuar a aula enquanto me recompunha da deceção.
Perturbou-me. Não devia. Não altera nada. Mas havia naquilo uma maldadezinha gratuíta, adolescente, ingrata. Uma maldadezinha humana como as outras. Nestas ocasiões concluo que nunca cheguei a sair da moralidade dos contos de Dickens. Ainda sou uma personagem de princípios, lutando contra o mal sem nunca desistir. Ainda sou, em essência, o que me manteve viva nos piores momentos.

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