Os aleijadinhos

Não acreditem em mim, por favor, não acreditem. Pensem por vós.
Tenho um passado que me persegue como um bom fantasma. Um eco de vozes, de palavras populares bebidas pelo sangue.
Tem cuidado com os aleijados. São maus. Tens pena deles? São dignos de pena, mas maus. Havia um homem... Ouço dentro da cabeça discursos guardados num lugar onde nunca puderam morrer, embora sem valor, e não pudesse compreendê-los então. Fui boa filha, porque soube esperar, porque não desmenti, aguardei. Fui boa filha porque quis sê-lo, mais do que qualquer outra coisa que se deseje ser: a boa filha.
Eis aqui o atleta sul-africano sem pernas que superou todas as dores e assassinou a sangue-frio a namorada com qualidades. Pensavam que o atleta sem pernas era um herói do atletismo e da bondade? Se tivessem nascido sem pernas não estariam cheios de raiva, não vos levaria ela ao pódio? Oh, eu, sim. A raiva leva-nos longe, aperfeiçoa-nos na ambição e na obsessão de nos igualarmos. Eu sou melhor sem pernas do que tu com duas sem mácula. Sim, sou melhor sem nada do que tu com tudo.
Porventura acreditam que um ser humano sem pernas tem uma vida como a nossa?. Levanta-se, toma banho, veste as calças... Não, não. Mesmo que dance, mesmo que tenha mulheres à sua volta, um homem sem pernas é um ser mutilado, cujo objetivo maior consiste em provar não apenas uma ideia de igualdade, mas de superioridade. Eles são maus, ouço este som vindo das regiões mais antigas das minhas memórias. Não confies neles. Não tenhas pena.
Um aleijado, e a palavra vem de trás, deixemo-nos do socialmente correto, tem como objetivo de vida diário a superação da sua diminuição. Não acreditem em mim, claro. Sabem que eu tenho estas manias de acreditar nas vozes antigas. Desacreditem-me. Os aleijados pensam todos os dias que não são iguais. Que a vida dos outros é tão mais fácil,. Fui uma aleijada a vida inteira, sê-lo-ei para sempre, mas não me deem razão. Procurem a vossa. Entretanto, Oscar Pistorius, o homem mais rápido do mundo, sem pernas, assassinou a tiro a namorada. E, simultaneamente, recordo que nos piores dias do meu pai, os dias que antecederam a morte, nos quais mal comunicava, e tinha dores, e não se podia mexer, e estava zangado e tinha raiva de tudo, de nós, da vida, de si, cuspia para o chão a comida que lhe púnhamos na boca e se atirava da cadeira de rodas abaixo, de propósito, para que tivéssemos de gemer para conseguir levantá-lo. Porque ele estava aleijado, e por isso tínhamos de lhe prestar atenção, porque ele valia, porque tinha raiva, porque não era um desvalido qualquer, mas o meu pai.

Mensagens populares