Eu que não morri, te saudo

Autor desconhecido, Rússia, 1909

Há uns tempos, os meus alunos perguntaram-me se eu acreditava no Inferno. Respondi-lhes que sim. Sim?! Esclareci que o Inferno era aqui, aquela aula, aquele momento, e que todos eles o estão já a viver. Que não há outro. Acrescentei que é amargo e doce. E que o seu lado de mel é tão delicioso, tão puro, que não queremos largá-lo, mesmo quando a ele nos prende um fio muito ténue.

O meu pai trabalhou toda à vida sem férias até integrar o contingente de técnicos da Hidroelétrica de Cabora Bassa, em 1975, o que lhe permitiu, dez anos depois, em virtude de um acordo estabelecido entre esse projeto e a EDP, integrar os quadros da última empresa.
Ao chegar a Portugal, o meu pai trabalhou até aos 70 anos como operador em diferentes subestações da região de Lisboa. Era ele que acendia a apagava a iluminação pública de zona que lhe correspondia, o que eu sempre considerei tarefa sumamente importante. Era ele que mandava na luz da capital!
Reformou-se, nos seis meses seguintes sofreu um acidente vascular cerebral que lhe destruiu metade do cérebro, e ficou paraplégico, preso à cama que veio de Lourenço Marques num caixote, porque a minha mãe implorou espaço num barco a um preto do comité, humilhando-se, dizendo que sim, era verdade, os brancos não valiam nada, muito menos o meu pai, mas que ela era apenas uma mulher, e assim conseguiu um papel com destino a outro preto, que também viria a exigir a sua humilhação de branca, devidamente acompanhada de luvas, de preferência em dólares ou randes.
Se o caixote dependesse do meu pai nunca cá teria chegado, o que me pareceria  aceitável, que eu também não sou de dobrar a espinha.

O meu pai não morreu nessa cama. Depois do avc, sentava-se nela de costas para a porta do quarto, enfrentado a janela aberta, de onde via os telhados dos prédios em frente, os aviões e os pássaros, nada mais. Com a mão direita agarrava o pináculo da cama e erguia-se sozinho, enquanto teve força nesse braço. Depois, o estado degradou-se, e dependia de nós para se sentar no mesmo lugar. Ficava horas assim, pensando, falando sozinho. 

Ao longo dos sete anos da doença, a sua condição mental foi-se alterando. Tinha períodos de euforia e outros de depressão. Finalmente, entrou numa apatia que rapidamente passava à agressividade. Foi perdendo faculdades próprias da consciência. Exigia de acordo com os seus impulsos, não atendendo à lógica ou à sensatez. Exigia do seu corpo uma normalidade perdida. Exigia-a de nós e dos médicos, como se fôssemos deuses com a possibilidade de o recriar.
Perto da morte, que lhe estava inscrita nos olhos e na voz com rigorosa nitidez, negava-a. Não queria morrer. Queria passear, rir-se, queria a minha companhia. Queria-me, mesmo que se risse como um bebé, mesmo que não houvesse nada de que rir, ria. Ria com os olhos, com a baba. Ria-se. Porque eu estava ali e o amava, porque eu era a sua carne, a sua luz, a sua vida. E sentado na cama, já entrado na demência do cérebro moribundo, ia dizendo, quando eu morrer, vais sentir muito a minha falta. Vais ver.  Hás-de chorar muito a minha falta. Quando eu morrer. Eu ia ao quarto e ralhava-lhe. Como é que podes dizer isso? Sabes o que estás a dizer? É o que me desejas? Calava-se, olhava-me com os olhos tristes onde se lia a morte com as letras todas, e baixava a cabeça, descaía o pescoço, os ombros. Eu havia de sentir muito a sua falta, pensava sem dizer.
O acidente vascular que lhe comeu o cérebro, transformou-o na sombra do meu pai e do homem que havia sido.

Ao longo dos 12 anos que marcam a sua ausência, realizei duas aprendizagens com ele relacionadas, que não servirão de exemplo, porque nada nunca serve.
Primeiro, que o amor não precisa de um corpo material nem de uma voz para se manter, evoluir e florescer. Continuo a amar o meu pai como se estivesse vivo, e é mais presente em mim do que muitas almas com as quais dialogo todos os dias.
Segundo, na sua demência, ele tinha razão: sinto muito a sua falta. Tenho-o chorado muito. Tenho fome dele. Uma fome voraz do seu corpo, voz, autoridade, poder, complacência. O desaparecimento do meu pai deixou-me mais única, só e alerta. Creio que ele me preparou para isso ao insinuar, desde sempre, uma solidão que me marcaria.
Com o meu reacionário, aprendi a dar, combater e resistir e não pensemos que a vida é coisa outra. Em sua memória e para sua satisfação, lá, onde me aguarda, continuarei o trabalho de guerrilha há muito iniciado.

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