O senhor cardiologista




A minha tarefa de hoje é dar nacionalidade à morte. Estive a pensar numa forma de a integrar na ordem das coisas, porque pertencendo-lhe, tanto como o nascimento, não é bem vista.
Não preciso de a compreender nem de a aceitar teoricamente. Isso é trabalho já realizado. Quero, precisamente, torná-la prática, normal como uma máquina de lavar. O senhor doutor cardiologista, jovem, sensível, simpático explica-me, “o coração bate 80 vezes por minuto: agora, multiplique 80 vezes por minuto por 24 horas, depois o resultado por dias, a seguir por oitenta e nove anos. Faça essa conta quando chegar a casa e vai ver que nenhum carro tem tanta resistência”.
Chego a casa e não faço a conta. São muitos batimentos, muitos mesmo e teria de ir buscar a máquina de calcular.

Nunca tive nenhuma máquina tão resistente. As minhas máquinas duram bastante, até que o motor se queima ou uma peça qualquer, por vezes muito pequena, se parte, mas tanto?! Posso substituir-lhes peças, mesmo que saia mais caro do que um novo eletrodoméstico, mas a máquina não voltará à sua juventude, e pouco depois sofrerá novo acidente noutra peça qualquer.
No outro dia quis comprar um cartão de memória para a máquina fotográfica mas não consegui. Os atuais cartões têm gigas a mais e a máquina não aceita o transplante. É como se o técnico me dissesse, “minha senhora, posso pôr-lhe um coração novinho em folha, mas não lhe garanto que funcione, e pior, o recetor pode mesmo sucumbir ao procedimento”.
O que preciso de deixar claro na minha cabeça é que as máquinas têm um prazo de duração variável, chegando o dia em que entram em falência mecânica.
 As peças da máquinas sofrem desgaste com o uso e não bombeiam nem canalizam sangue 24 horas por dia durante 89 anos, como o coração. Portanto, a minha reclamação perante o senhor doutor cardiologista não colhe. Não é verdade que o coração seja uma máquina frágil. Algum de vós tem consigo uma máquina de metal que trabalhe ininterruptamente desde 1924 sem nunca ter sido desligada?

O coração é o tal escravo sem redenção para o qual nos remete Bernardo Soares quando defende que “se o coração pudesse pensar, parava de trabalhar”. Os escravos não existem para pensar, mas para fazer. É princípio elementar de qualquer estado autoritário: retirar o pensamento, diminui-lo até à extinção. Quem pensa, sofre de uma dor que não obedece.
Pobre coraçãozinho cansado. Sim, não podes continuar. Claro que não. Descansa, tonto. Há um dia em que tens de parar ,a bem ou a mal. Ou paras ou rebentas, e, em qualquer dos casos, paraste. Eu cá me arranjarei à minha maneira.
E nesse dia, julgo eu, a morte regressará a casa e ocupará o corpo, seu país disperso.
Deve ser bom regressar, após tantos anos, ao lugar de onde saiu. Mas ela reclamará.  "Está tão usada a casa! Meu Deus, o que fizeram eles neste lugar que apenas emprestei. Isto é que foi estragar o soalho e rebentar com os candeeiros! O que andaram a fazer com aquilo que é meu?"

Nesse dia, não quero chorar. Quero sorrir à morte e dizer-lhe "levas a casa onde eu nasci. Vai tudo partido, minha amiga. Essa máquina atravessou oceanos e venceu o cabo das tormentas. Respeitinho, portanto. Das peças não aproveitas nada. Chama um empreiteiro, faz obras. Arranja-te, próxima amiga. A propriedade sai sempre cara."
Mas se chorar, que importância tem chorar?! As máquinas enferrujam com as lágrimas?

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