Simone tinha um cão rafeiro




Quando Simone levou para a sua casa, nos subúrbios, os objetos que guardava em permanência em casa de João Paulo, Piruças, o velho cão rafeiro, recebeu-a à chegada, festejou-a, e distraiu-se com a carga; cheirou longamente as mantas, os casacos, os sapatos, os cremes no interior dos sacos que a dona pousou à entrada; depois levantou os olhos e perguntou-lhe, sem compreender, “para que trouxeste tu isto, se era de lá?”
Os cães não compreendem as mudanças e a sua incompreensão não carece de lógica. Os objetos que Simone deixava permanentemente em casa de João Paulo já não lhe pertenciam; eram testemunhas participantes do amor naquele espaço.
Quando Simone telefonou ao namorado,  anunciando que precisaria de "ir buscar a escova de dentes, e o resto das coisas", ele deveria ter-lhe respondido que não havia nada exclusivamente seu que pudesse levar, porque as mantas eram aquelas que os tinham cobrido, e as roupas as que tinham sido por eles abraçadas. Devia ter acrescentado que não se sai do amor sem rasto. Quereria Simone levar o seu cheiro,  palavras, sorrisos, choros e gritos? Julgaria ela apagar pelo vazio da ausência o que lhes tinha acontecido, retirando da casa os cremes de rosto e as mantas de sofá? Não lho disse e Simone não o pensou. Simone tinha ascendente de capricórnio, e disse para si, "acabou, portanto, separemos as coisas." Foi o que lhe passou pela cabeça, e mais nada. Simone era uma mulher sem mal, mas o namorado jogava xadrez.
João Paulo marcou encontro no jardim do bairro, e levou-lhe tudo em dois sacos do Jumbo, dos bons, dos que se compram. Afinal, parecia pouca coisa. Havia umas minudências que ficariam para depois. Simone acedeu, abatida pela necessidade de se mostrar forte. João Paulo era uma casa abandonada, pensou ela, e longe dele chorou os três dias seguintes. Ele sorriu-lhe sem vontade. Fez esforço para comparecer. Disse que telefonava. Não telefonou.Desapareceu.
Nas mantas, Piruças cheirou Paulo, Simone,cheirou os dois juntos, e o odor da casa e dos tempos. Só o cão de Simone sabia que o amor é uma reação química inscrita nas fissuras dos objetos, nelas permanecendo após a morte do mundo como um espírito sem salvação.

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