A Constituição explicada às crianças

Aquele reino tinha vivido quase meio século sob o domínio de um rei autoritário e autista, de maneira que numa certa primavera os guerreiros depuseram-no. 
O povo ficou parvo a olhar para aquilo, mas pareceu-lhe bem, porque evitava uma série de chatices com as zonas longínquas do reino para cujo fossado os jovens eram enviados. 
Após um par de anos conturbados no "mando eu ou mandas tu", chamaram os escribas e os mais velhos que, em conjunto, redigiram um documento que doravante passaria a regulamentar o exercício da autoridade do rei. Por exemplo, o rei deixou de poder mandar decapitar o povo, mas passou a estar igualmente protegido pelo mesmo documento. 
Aquele escrito instituía um conjunto de princípios a cumprir por todos os grupos para o bom entendimento, equitativo, justo, entre todos . Era a bíblia do reino. Como se constituiu um documento de total referência, passaram a chamar-lhe constituição. 
Muitos outros reis sucederam a revolta dos guerreiros, mas nenhum se atreveu a questionar a importância da constituição, que tudo regulava, embora às vezes lhes apetecesse, porque os reis gostam muito de fazer só o que lhes apetece e de não dar justificação, mas essa tendência tinha já sido prevista pelos sábios que a haviam redigido e aprovado, pelo que havia uma garantia de proteção para todo o reino. O povo sabia que a constituição salvaguardava, e que mesmo que alguém tentasse ultrapassar as suas regras, existia um conjunto de sábios que julgariam tais tentativas e não o permitiriam, o que também se encontrava salvaguardado nesse livro, porque quem o tinha escrito tinha mesmo muita experiência sobre os perigos da autoridade não controlada.
Um dia apareceu um rei que queria mandar sem limites e roubar o povo para enriquecimento dos seus amigos, o que resultaria, indiretamente, por portas e portinhas, no seu próprio enriquecimento. Outros reis já haviam roubado às escondidas, mas este queria que roubar se tornasse legal, desde que fosse só ele e os amigos a realizá-lo. E o malandrou pensou "Vou fazer uma lei para destruir esse livro. Vou convencer o povo de que a constituição não presta, só prejudica a credibilidade do reino. Vou convencer o povo de que se não aceitar ser roubado lhe vai acontecer uma grande desgraça." E assim foi. O rei mandou delegados para todas as feiras com o objetivo de convencer o povo de que o escrito salvador era maldito porque ser roubado pelo rei era o melhor que podia acontecer a cada cidadão, para seu próprio bem.. Era preciso extinguir o livro-salvaguarda.
O povo, claro, ficou na dúvida, porque acreditava que os reis tinham poderes superiores ao comum mortal, e nada fez quando o rei mau destruiu a constituição e o grupo de sábios que a vigiava. Aceitou, assim, passar a ser roubado legalmente pelo rei e amigos e viveu um século sob o seu domínio autoritário e autista. Quer dizer, aqueles que sobreviveram.

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