É tarde

A Noiva Judia, Rembrandt (detalhe)

Estivemos a dar "O amor é fogo que arde sem se ver" e eles estavam a adorar. Uma grande barulheira de récitas privadas em cada carteira. Gostam logo do soneto, mesmo sem o perceberem cabalmente, porque tem fogo, o soneto, e o amor tem fogo, e é bom, magoa, sabem-no, e querem-no. E foi isso que os levei a perceber. Esse "como causar pode seu favor/ nos corações humanos amizade/ se tão contrário a si é o mesmo amor?" Façam-me a paráfrase deste terceto, pedia-lhes. "Se tão contrário a si é o mesmo amor?", o que quer o sujeito poético dizer? O que significa sermos contrários a nós? E lá chegámos onde queria levá-los. Gostaram. Compreenderam. Sim, sim, já tinham sentido, conheciam perfeitamente. Expliquei-lhes que me lembrava muito bem do amor-fogo da juventude, de quando tinha a idade deles. Dos amores loucos, dos não correspondidos, irracionais. Disse-lhes, "aproveitem-no bem, olhem que não há nada igual e nunca mais volta a ser o mesmo." Perguntaram-me se achava que ainda podia encontrar o amor? Eu?! Estão a perguntar-me se ainda posso achar o amor para mim?! Fitei-os a sorrir enquanto pensava. Eles sabem que respondo sempre sem pejo. Pensei. Demorei mais cinco ou seis segundos do que se pretendia. Então?! Olhavam-me, atentos. Que resposta esperariam? Pela expressão nos seus rostos, um sim, sem dúvida. Baixei a cabeça e respondi a verdade. Não, já é demasiado tarde. Oh!, não diga isso. Ainda é tão nova. Sim, sou, mas já é demasiado tarde. Queria tê-los enganado, e enganar-me. Queria estar errada. Mas imaginei o mundo, revi as pessoas, as suas expetativas, a minha intocável meninice insatisfeita e só me ocorreu "é tarde, meninos, é tarde".
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