"Ao menos tens trabalho."


Entre 1981 e 1984 as greves gerais sucediam-se e estendiam-se por períodos longos. Eram greves a sério. Não havia transportes nem água nem luz. Nessa altura morava no Feijó, em casa da minha querida prima D., e estudava no ISLA, na rua das Praças, à Lapa. Nos dias em que a greve coincidia com exames marcados, iamos a pé para Cacilhas, às cinco da manhã, com a esperança de que saísse algum barco, e normalmente havia sempre um que atravessava o Tejo, a hora incerta e tão carregado, que a foz subía-nos até às janelas.
Seguíamos depois a pé do Terreiro do Paço ou do Cais do Sodré até à Lapa, e no regresso era o mesmo: sentávamo-nos no velho cais, esperando que um comandante resolvesse sair, e corríamos para apanhar o primeiro barco que se anunciasse.
Devo dizer que achava isto uma aventura e nos divertíamos imenso. Éramos quatro do ISLA, desta banda: a Virgínia, a Anabela e a outra cujo nome não me lembro. Andávamos a pé, falávamos de namorados e nomes que havíamos de dar aos filhos futuros e ríamos. Tínhamos 19 anos. 
Lembro-me de estudar Cálculo e Direito na sala, suando, e, precisando de banho, perguntar à prima se já tinham ligado a água. Ainda não, que ia telefonar para o depósito a saber quando retomavam o turno. Ligavam a água um bocado à hora do jantar, e tínhamos de aproveitar e tomar banho todos de seguida, armazenando a de que precisávamos para o jantar. O mesmo com a eletricidade. Era despachar a fazer o jantar e a comê-lo. O primo B. fazia piadas com a ideia de enchermos a banheira e durante dois dias tomarmos todos banho na mesma água.
Vivíamos as greves sem nos passar pela cabeça questioná-las. A greve era uma chatice que todos tinham de suportar em nome de um bem maior. Nunca me ocorreu questionar o direito dos motoristas de autocarro a fazê-la nem o dos controladores aéreos e pessoal de terra e ar dos aeroportos. Parto do princípio que quem faz uma greve se encontra privado de um direito e que luta por ele. Parto do princípio que as lutas de qualquer classe profissional são uma vitória pessoal indireta, porque a justiça laboral assim criada irá influenciar de forma geral toda a sociedade enquanto tendência. As lutas dos outros são também minhas. E é aqui que está o busílis da questão, hoje. Surgiu um individualismo que não reconheço. Vivemos com pessoas que não são capazes de pensar para além do seu interesse pessoal e imediato. Não somos uma comunidade. Estamos sós.
Durante o Cavaquistão e seguintes foi-se esquecendo a ideia de que a greve era o legítimo direito de classes laborais. Esqueceu-se que uma greve se faz com o objetivo de provocar danos que pressionem o poder. Obliterou-se quase tudo o que antes se aprendeu sobre solidariedade, democracia e direitos do cidadão e do trabalhador. De manhã, escutei uma passante dizer ao telemóvel um dos enunciados que mais me irrita nos últimos tempos: "ao menos tens emprego!" Imagino que o interlocutor lhe fizesse queixas, eventualmente legítimas, e à passante sai-lhe um "ao menos tem emprego", ou seja, aguenta, mesmo que ganhes pouco e o patrão te trate mal. Contenta-te com a escravatura que te permite pagar a renda. Como conseguem viver os que pensam assim?
Demos a democracia como ganha. Imaginámos que seria impossível regredir. Hoje vemo-nos num cenário no qual não temos democracia nem os nossos interlocutores mais jovens a valorizam, porque a não aprenderam. A escola não se preocupou eficazmente com a formação dos cidadãos. Introduziu-se a Formação Cívica do 5º ao 9º ano, a partir de 2000 ou 2001, área curricular sem programa, cujos temas de trabalho ficariam à escolha dos diretores de turma em conjunto com os alunos. Erro. Teríamos precisado de um programa. Quero que os alunos conheçam a Constituição da República, que a estudem. Continuo a desejar que se preocupem com a ecologia e a sexualidade e o consumismo, mas quero-os a aprender a diferença entre o que é legal e o que é legítimo, para que não se confundam. Têm de saber o que é o direito a resistir, e perceber que o trabalho não é a salvação pelo capital, em seu nome. O que significa o trabalho? Para que trabalhamos? O que é uma comunidade? Que poder tem a a sua união? E quero professores com formação específica para lecionar esta disciplina, não é o diretor de turma ou outro qualquer. E chamei-lhe disciplina, não área curricular, o que mudaria todo o cenário por implicar notas a sério.
Se não mudarmos rapidamente de direção no que respeita à formação cívica dos mais novos, preparemo-nos para um inferno ainda pior.
Resta saber o que fazer aos que não são mais velhos nem mais novos e para os quais já não há caminho possível. Uma boa parte deles, não sei se percebem, já nos governa.

Mensagens populares