Os meus pasolinianos



Estou na esplana do Café Colina cumprindo o ritual de sábado de manhã. Levanto-me tarde. É tarde. Bebo o garoto e leio "Um Rapaz a Arder", de Eduardo Pitta. À minha volta, os homens do costume, pouco mais novos do que eu, gastos pelo desemprego, aquecem minis na palma da mão. Gosto deles. Não sei o seus nomes. Chamo-lhes "o vizinho". Eles chamam-me "a menina" ou "a senhora", conforme. Sou a única pessoa que se atreve a ler um livro na esplanada do Colina. Desde que abriu, nos finais dos oitenta, nunca lá vi ninguém a ler mais que jornais desportivos ou o Correio da Manhã. Um homem macho a sério não vai ler para a esplanada, e no Colina não há abichanados. Ajudam a cozinheira a assar as sardinhas. Trocam piropos. Perguntam-me se quero ameijoa acabadinha de apanhar, sem iva. Pouso "Um Rapaz a Arder". Claro que quero. Pergunto, na brincadeira, se o preço inclui as toxinas. Respondem, sem sorrir, que aquilo é bivalve são, apanhado na melhor praia do distrito, e vão bebendo as bejecas, felizes, muito mais felizes que todos os homens sábios que conheço, leitores compulsivos de todos os filósofos importantes e teóricos da literatura e ciências sociais. Brutamontes cuja aparência escancarra a classe social a que pertencem, mas brutamontes civilizados, com a sua mesura. Volto os olhos para o livro e penso no Eduardo Pitta, sorrindo. Cadeiras de metal, meu amigo, nem flutes nem champanhe nem perdiz nem literatura nem política nem roupa de marca. Aqui, só pasolinianos de cepa. Todos. Comer, beber e fornicar enquanto se consegue. Levanto os olhos. Corro os olhos pela "machada" de novo. Um trouxe a mulher, louríssima, de cabelo até à cintura, minissaia, sapatos compensados, gasta de desemprego. Toma conta do seu homem, e é simpático, o senhor. Antigamente pintava os cabelos com a mesma tinta da mulher, mas agora desistiu. Tem um brinquinho, o que é um risco, no Colina.
Ironicamente, costumava dizer ao Joca que não se pusesse com cenas gay, no Colina, porque aquilo era só macho encartado, ao que ele me respondia "eu bem vejo como olham para mim", e sorria maliciosamente.
Olho de fora para a esplana e vejo-me no meio deles como um extraterrestre autorizado. Habituaram-se a ver-me. Sou a solteirona da cadelinha velha. A professora. Moderam a linguagem na minha presença. "Não vês que está ali uma senhora?" E pergunto-me porque insisto no desassossego do Colina, quando há tanto café decente por aqui, repleto de jovens de 30 anos, cheios de filhos, fervorosos adeptos do euro, bem vestidos, bem comportados, com medo que a Morena lamba as mãos às crianças e lhes passe doenças. Bem, é mesmo por eles que continuo a escolher os machos do Colina, e o fumo das sardinhas. Não me revejo na maior parte destas pessoas que nasceram depois do 25 de Abril. Não é um fosso geracional, mas de valores, ideológico. Há uma fratura entre nós. Chama-se dinheiro. Eu e os machos pasolinianos do Café Colina, apesar das nossas diferenças, possuímos um saber comum: somos e temos nada. Sabemo-lo de forma diferente, por via diferente, mas está cá. Somos nada e nada e o resto é nada. E, no entanto, há uma parte cega em mim, só sentido, que sabe que estes homens não me deixariam morrer. Não tenho tanta certeza relativamente ao jovens neo-liberais da classe média-baixa dos cafés limítrofes. Que pena não sentir atração sexual, para devorar o que nos pasolinianos do Colina ainda é puro, estritamente animal, incontrolável e perigoso. A vida é um canal tão largo e tão cheio. Não pensam nisso e não interessa. Vivem-na entre um biscate e uma cerveja. Fecho o livro do Pitta e vou para casa com as ameijoas e a Morena, viver, sem testemunhas, o lado dos meus dias que não autorizo a ninguém.

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