Alma das pedras

Foto: Mark Seawell


Tive uma colega de Geologia que era uma caga-tacos. Magrita, enfezada, tímida, mal se lhe ouvia um som Não projetava a voz, não articulava corretamente, fechava as vogais, desejando que não a ouvissem, tal como existia pedindo aos deuses que ninguém notasse a sua presença. E realmente ninguém dava por ela.
Ali estava aquele ser, tremendo, balbuciando, e uma pessoa perguntando-se como aguentaria as aulas. 
Certa semana, no âmbito de um projeto transdisciplinar, calhou-me estar presente numa das suas aulas, tal como ela estaria posteriormente numa das minhas, numa turma que tínhamos em comum. 
Aquilo começou mal. Fechada, acabrunhada, mal levantava os olhos da secretária, sobretudo muito envergonhada com a minha presença. A certa altura levanta-se, porque alguém ali teria de começar, e os putos começam a atirar-lhe questões. A tímida responde hesitante, pausadamente, primeiro, mas concentrando-se na matéria, exclusivamente, no seu saber, esquecendo a audiência, e inicia um dos mais belos discursos sobre calhaus a que assisti. Ela dava vida às pedras, usando verbos expressivos para lhes atribuir características morfológicas ou de comportamento perante diversos fenómenos. As pedras, no seu discurso, eram pássaros, pequenos bichos que se viam sujeitos a condições adversas, choravam, envelheciam e sobreviviam ao abandono. As pedras tinham pele e carne. Voava, pairando sobre a matéria, tornando-a compreensível, palpável. Aquela meia-leca de mulher, com medo de tudo e todos, transfigurava-se confrontada com a sua paixão. Nós não existíamos totalmente. Era certo que estava ali alguém. Ela sabia-o, e só isso faria sentido, mas éramos o menos, porque o que ali estava certo era ela saber tudo sobre geologia e conseguir transmiti-lo com poesia e notórias capacidades oratórias. Saí a sorrir.
Sou curiosa sobre pessoas. Quero conhecer e interrogar a natureza do outro. Fascino-me com comportamentos, com as histórias de vida. Porque é ela assim? Porque fez ele aquilo? Como suporta aqueloutro? O livre-arbítrio surpreende-me. Ninguém faz o que deve, ou, pelo menos, raros são os que o realizam pela via sacramental. Cada pessoa é a sua história e eu assisto fascinada ao filme dessa vida, sequiosa por mais. Porque és assim? Porque foste? Porque insististe? Porque aceitaste um sofrimento que ninguém te pedia? O que te motivava? Talvez a minha paixão seja fazer perguntas sobre os percursos alheios, mas não sei explicá-lo, tal como a minha colega tímida não saberia explicar porque amava o granito e mármore.

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