Cera dos ouvidos, macacos, ramelas e furúnculos no rabo

Miguel Esteves Cardoso e Maria João

A semana passada Miguel Esteves Cardoso escreveu uma crónica para o Público sobre a cera dos ouvidos e ainda não li ninguém a cortar-lhe na casaca. As pessoas gostam de cortar na casaca ao MEC, porque consegue escrever sobre tudo e fazê-lo bem.
A história da cera dos ouvidos era mais ou menos isto: tomou uns banhos de mar, ficou com os ouvidos entupidos; à revelia de todos os conselhos dos otorrinos resolveu usar cotonetes, mas piorou, criando um rolhão de cera mais profundo. Foi salvo por um enfermeiro do posto médico que, com mãos de deus e de bruxa, e um esguicho de água morna, lhe lavou aqueles porquíssimos recetores auditivos. MEC ficou aliviado. 
Do que gosto eu nesta crónica? Para já, tinha estado a semana passada, numa consulta para o mesmo efeito, com a minha mãe, e escuso de ser eu a abordar o tópico dos rolhões de cera que têm de ser extraídos a ferro - no caso da minha mãe. Posso ficar com os temas "macacos do nariz" ou "ramelas", igualmente edificantes e muito do agrado da inteligência nacional. Aprecio temas que me impeçam o uso de vocábulos como diáfano e nefando. Gosto de escrever exatamente como se fala no café Colina, estilo a que se dá o nome de coloquial. Fulano (nunca fulana, porque as mulheres não escrevem, fazem crochet) escreve num estilo coloquial, o que traduzido quer dizer algo como "não usa vocabulário grandioso, eloquente, nem estruturas sintáticas complexas".
MEC, não só é um dos melhores prosadores em língua portuguesa, vivos ou mortos, em estilo coloquial ou cultivado, como acumula uma outra característica que me agrada e que atinge como uma doença boa quem se aproxima do fim, quero dizer, da perda absoluta, abismo do qual não se regressa igual nem intacto: está-se nas tintas. MEC senta-se ao computador e escreve: estou com um furúnculo no rabo, logo hoje que preciso de passar seis horas sentado, enquanto a Maria João, na sala ao lado, trata o tumor que lhe nasceu no cérebro. Escreve: a vida é uma besta feroz, mas eu e a João vamos cozer lagostins para o jantar.
O que sinto é que, enquanto a sociedade e o Meio cortam na casaca do escritor e do homem, MEC está além. Está na sua, e o que se passa cá em baixo não chega a causar-lhe formigueiro na sola dos pés.

Declaração: não conheço MEC nem nunca o encontrei na rua, que me lembre.

Mensagens populares