Eu sou aquela

Foto: Mike Brodie

A vida simples deve conter atos simples. As vidas simples parecem poemas colhidos no auge da verdura e atados com um baraço de erva  para dar de comer aos animais, no inverno. Regamos as plantas, metemos as mãos na terra e falamos com a criação.
Eu gosto de deixar milho aos meus pombos, à noite, e de lhes encher as malgas de água até acima. Sei de que de manhã hão-de estar à procura do que lhes deixei. Gosto de repetir o gesto quando regresso à tarde. Associam-me ao milho que vão comer e aproximam-se quando me veem chegar, sem medo, como se fosse uma entre eles. Eu sou aquela.
Banham-se na malga. Sacodem-se. Catam-se. O Tachada tenta pôr-se na Tachadinha.
Gosto de dar comida à Morena. À noite sentamo-nos no chão da cozinha e vou-lhe chegando grãozinhos de ração na minha mão em concha. É a segunda refeição. A primeira é ao almoço, composta por carne de frango ou peru cozida com cenoura, couve, arroz ou massa. Por vezes, peixe. O ritual do chão da cozinha é importante entre nós. Abstraio-me do que faço e sinto apenas a sua língua lamber-me a palma da mão.
Os animais reconciliam-nos com a vida, que é tão absurda, tão injusta, porque os animais são retos. Sabemos sempre o que nos querem, não fingem, não arranjam subterfúgios.
Os miúdos são parecidos. As pessoas não percebem isto, mas os miúdos são muito puros e confiam em nós. Mesmo quando têm problemas e são animais acossados. Os animais acossados exigem cuidado e paciência. Temos de ser cuidadosos, mas no âmago está o essencial, que é uma luz, um sorriso, um momento de paz. Um cuidem de mim.
Também gosto das pessoas. Digo o que sinto com uma brutalidade original. Não sei mentir e, se o tento, rapidamente me apanham. Conhecer os animais faz-me saber mais sobre os outros do que os próprios têm consciência. Intuo-os. A maior parte das pessoas traz o lado de dentro todo virado para fora, como se tivessem sido cortadas ao meio. Há apenas uns poucos que não consigo ver, e desses tenho medo, tal como do fundo do mar.

 O meu maior defeito é ser bruta, mas não é bem um defeito, é recusar convenções. O meu pecado maior continua a ser o mesmo desde os 10 anos, como confessava ao senhor padre da Matola: sou respondona à minha mãe. Sou muito respondona. Pensa que diz o que quer e que faz o que quer, mas eu não sou dela, sou minha dona.

À noite gosto de dormir com o braço direito todo estendido, encostado à barriga da morena, entalado entre as suas patas traseiras e dianteiras, mas com o calor ela não quer dormir comigo, por isso meto uma almofada entre as pernas e abraço-me a outra, para não sentir o calor do meu corpo.
O corpo é limitativo, mas sem corpo não estaria aqui, e não teria experimentado o horror e a maravilha que implica estar vivo para os outros e para mim.
Quando a minha mãe morrer vou ter saudades dos dias em que implicava comigo e me chamava gorda e me dizia que a roupa não me ficava bem nem o cabelo, e que a pele não estava em condições. As pessoas nunca estimam o que têm.

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