O preto do primeiro andar

No prédio da minha mãe havia um homem muito jovem que, que quando o meu pai era vivo e já doente, me ajudava muito. Talvez tivesse pena de mim e da minha mãe. O meu pai era gordo, paraplégico, colado à cadeira de rodas, e o prédio tinha cinco degraus à entrada. Tirá-lo de casa e fazê-lo entrar era uma aventura.
O homem era o Pinheiro, cabo-verdiano muito claro, de olhos amarelos, casado com uma miúda branca, linda. Para o meu pai era o preto do primeiro andar. "Vai lá chamar o preto". Gostava dele, mas não engolia aquilo da miúda branca, ainda por cima grávida duma grande barriga, e era preto, isso ninguém lhe tirava.
A minha mãe ajudava a rapariga, muito novinha: trocavam açúcar e batatas e azeite. Era boa gente.
Depois a vida correu-lhes mal, aqueles vizinhos divorciaram-se e largaram a casa. Não recordo se o meu pai ainda assistiu ao declínio da família Pinheiro, mas tenho ideia que morreu antes.
Lembro-me muito desse casalinho jovem que tanto me ajudou. Era tão duro carregar o meu pai, e o Pinheiro pegava na cadeira em braços e upa, punha-o em cima, levava-o para baixo. O meu pai ria-se com um sorriso de criança. Ficávamos muito felizes. Há pessoas boas.
O Pinheiro desapareceu do mapa, mas a miúda ficou pela Margem Sul, criou o filho e recompôs a vida. 
Hoje encontrei-a na escola. Pensei que se fosse inscrever em alguma disciplina ou curso. Continua a parecer uma menina. Linda. O que é o tempo?! Nem penso nele em casos assim. Acho que não dou pela sua passagem. Falámos a correr. Vinha do encontro com uma diretora de turma. "O seu miúdo vem cá para a escola?", perguntei-lhe. Estava com pressa. "Não, não, vai-se embora. Acabou agora o 9º." E despedimo-nos. Fui saber quem era a diretora de turma. 
A miúda linda, a mulher do Pinheiro, é a mãe do meu Ricardo, sempre sereno, doce, apaixonado, sonhador. Repito: o Ricardo é filho do Pinheiro. Fui uma data de anos professora da enorme barriga que a branca que estava casada com o preto pariu.

Mensagens populares