O velho

Ele sabia que ia morrer. Estava velho e doente, mal se podia mexer. Nos últimos meses o corpo vinha a preparar-se como uma instalação elétrica que se vai avariando fase após fase. Primeiro começou a engasgar-se com a própria saliva. Um dia deixou de ouvir. Depois  perdeu o apetite. Ele sabia que ia morrer e que não seria daí a muitos anos, mas o dia permanecia oculto, por isso havia ainda a esperança do adiamento. Quem sabe se com um aparelho auditivo..., se o filho lhe comprasse umas vitaminas para abrir o apetite..., se mastigasse com cuidado, se lhe dessem a comida toda passada?! Não podia morrer. O filho precisava dele. Era um peso, com esta idade, os trabalhos que dava, mas o filho precisava dele, porque sim, porque ele sabia. Portanto não podia morrer, era pôr para trás das costas e fazer o sacrifício de ter dores, de se queixar como alívio, de pedir ajuda, de sentir a chatice que se tinha tornado para si e para os outros. A morte pousava todos os dias na cabeceira da cama. O velho acordava, via-a, esfregava o olhos e dizia. "Vai-te, mulher desconhecida! Vai-te daqui!" Enxotava-a e a morte voava para outra paragem, prometendo regressar no dia seguinte. Saber que se vai morrer breve pode ser enganoso. Mesmo a morte podia ser um problema neurológico, uma consequência da velhice. Foi o que o filho lhe disse, quando lhe contou as visões. "Sabes, pai, quando o corpo envelhece aparecem-nos coisas estranhas que nunca notámos antes. Não ligues a isso. Já não és novo, é certo, mas não podes desistir, não podes empreender nessas impressões." O filho tinha razão. Podia ter ainda muitos anos de vida, quisesse Deus. E rezava, ao final da tarde, o seu mantra de orações a Deus Pai, à Senhora, e se pudesse ainda iria a Fátima, num dia em que tivesse menos dores, nem que tomasse dois Voltaren para se aguentar. A semana recomeçava. A mesma rotina. Os mesmos gestos. As mesmas queixas. A vida pesava. 

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