Memória e dilema



Vivo um dilema com as coisas da minha mãe. Por um lado preciso de não olhar para o que foi dela, mas por outro tenho muita dificuldade em libertar-me do que nos pertenceu.
Dou um exemplo: a mobília de quarto dos meus pais, que foi comprada ao mudarmos para a Matola, tinha eu 7 anos. Boa madeira exótica, sólida como quando foi adquirida. Não é apenas uma boa mobília; tem consigo a narativa dos caixotes dos retornados, que é a história do século XX e da descolonização. Quero ficar com ela, porque não posso desfazer-me de algo com um valor afetivo tão grandioso. Por outro, preciso de me desfazer dela, porque me perturba enfrentá-la, e desejo ver-me livre da dor; já chega; é urgente abrir caminho pela minha própria vida.
Sei que se me desfizer dela me arrependerei mais tarde, como quando me desfiz, com raiva, de todas as cartas que eu e os meus pais trocámos durante uma década, enquanto estivemos separados. Ao destruir essas cartas, destruí provas irrecuperáveis, e procuro afastar do pensamento que o fiz.
Do que eu precisaria era de um armazém onde guardar o passado até conseguir enfrentá-lo, como fazemos com a memória.

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